domingo, 20 de junho de 2010

Ler, com qual finalidade?


Os manuscritos de Getúlio e o prefácio que Lula não escreveu
Augusto Nunes (*)

Nunca antes neste país houve um presidente que não tivesse lido sequer uma orelha de livro nem escrito pelo menos alguma anotação na agenda. Lula foi o primeiro. Ele jamais escondeu a aversão a leituras ─ ou porque dão azia, no caso dos jornais, ou porque são mais estafantes que exercício em esteira, se passam de 10 centímetros. E ninguém jamais o viu empunhando uma caneta ou dedilhando um teclado para produzir meia dúzia de linhas sobre o que quer que seja.

Há sete anos e meio em Brasília, Lula não sabe se existe alguma estante na Granja do Torto, nem procurou saber onde fica a biblioteca do Palácio da Alvorada. E sua letra foi vislumbrada pela primeira (e última) vez em 1982, zanzando sem bússola num recado tatibitate ao sobrinho que fazia aniversário. De lá para cá, não rabiscou lembretes em agendas, não fez anotações em diários, não mandou cartas, e-mails ou bilhetes ordenando a Gilberto Carvalho que o acordasse mais tarde. Nunca escreveu coisa alguma.
Começou agora, avisou o senador Aloízio Mercadante em 13 de Junho do Ano de Graça de 2010: “Entreguei um exemplar do meu novo livro ‘Brasil, a construção retomada’ ao presidente Lula, que fez o prefácio”, garantiu a mensagem transmitida pelo twitter do Herói da Rendição. A notícia embutia uma segunda descoberta igualmente assombrosa: como ninguém escreve o prefácio sem ter lido o livro, Lula ─ entre a assinatura de um tratado de paz no Oriente Médio e a celebração de um acordo no Irã ─ encontrara tempo para ler com a devida atenção outro filhote do prolífico Mercadante.

Desde novembro passado, os interessados na compreensão da saga republicana aguardam, justificadamente excitados, a divulgação de quase 700 bilhetes enviados por Getúlio Vargas a Lourival Fontes, chefe da Casa Civil do governo constitucional. Redigidos entre o começo de 1951 e agosto de 1954, deverão chegar às livrarias junto com o catatau do senador. Os manuscritos de Vargas podem jogar mais luz sobre uma tragédia. O prefácio pode ser jogado no lixo: é só outra farsa. Lula limitou-se a garatujar a assinatura no palavrório que alguém escreveu.
Por ação ou omissão, os intelectuais companheiros se tornaram cúmplices da celebração da ignorância. O que houve com o Brasil para engolir sem engasgos alguém incapaz de desenhar um O com um bule?, pergunta a gente sensata. O que leva um país a tratar como inimputável um chefe de governo incapaz de produzir um único registro escrito sobre os anos vividos no coração no poder? Conversa de elitista, recita o ensaísta Antônio Cândido, que não fez outra coisa na vida além de lidar com palavras.

“Acho que os historiadores do futuro terão dificuldade em entender o contraste entre essa quase unânime reprovação do Lula pela grande imprensa e sua também descomunal aprovação popular”, escreveu Luis Fernando Verissimo. “O que vai se desgastar com isto é a idéia da grande imprensa como formadora de opinião”. É muito cinismo, estariam berrando os intelectuais independentes e os estudantes livres de cabrestos ideológicos se ambas as espécies não estivessem em extinção no Brasil da Era da Mediocridade. O que os historiadores do futuro custarão a entender é a vassalagem prestada por escritores estatizados, cronistas federais e humoristas amestrados ao chefe que encarna a Era da Mediocridade.

A julgar pela comédia nsaiada por Mercadante, o rebanho agora quer promover o pastor a homem de letras. É tarde. O espaço reservado a Lula no Museu da República não terá uma única gaveta ocupada por cartas, diários, anotações, rascunhos, recados, mensagens, canetas, lápis, boletins escolares, composições à vista de uma gravura ─ nada. Se algum curador oportunista fizer de conta que prova de fraude é documento histórico e expuser à visitação pública as páginas que abrem o livro de Mercadante, tomara que não fiquem ao lado dos bilhetes de Getúlio.

Os manuscritos permitirão que se contemple com mais nitidez o ocaso perturbador de um estadista que saiu da vida para entrar na História. O prefácio que Lula não escreveu desnuda a cabeça primitiva de um político que caiu na vida e caiu da História.

(*) Ex-Diretor do Jornal do Brasil, do Jornal Gazeta Mercantil e Revista Forbes. Atualmente na Revista Veja.

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