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segunda-feira, 9 de março de 2015

Olha o velhinho!

Luis Fernando Veríssimo (*) 

Um fenômeno novo na realidade brasileira é o ódio político, o espírito golpista dos ricos contra os pobres. O pacto nacional popular articulado pelo PT desmoronou no governo Dilma e a burguesia voltou a se unificar. Economistas liberais recomeçaram a pregar abertura comercial absoluta e a dizer que os empresários brasileiros são incompetentes e superprotegidos, quando a verdade é que têm uma desvantagem competitiva enorme. 

O País precisa de um novo pacto, reunindo empresários, trabalhadores e setores da baixa classe média, contra os rentistas, o setor financeiro e interesses estrangeiros. 
Surgiu um fenômeno nunca visto antes no Brasil, um ódio coletivo da classe alta, dos ricos, a um partido e a um presidente. Não é preocupação ou medo. É ódio. 

Decorre do fato de se ter, pela primeira vez, um governo de centro-esquerda que se conservou de esquerda, que fez compromissos, mas não se entregou. Continuou defendendo os pobres contra os ricos. O governo revelou uma preferência forte e clara pelos trabalhadores e pelos pobres. Não deu à classe rica, aos rentistas. 

Nos dois últimos anos da Dilma a luta de classes voltou com força. 
Não por parte dos trabalhadores, mas por parte da burguesia insatisfeita. 
 Dilma chamou o Joaquim Levy por uma questão de sobrevivência. Ela tinha perdido o apoio na sociedade, formada por quem tem o poder. 

A divisão que ocorreu nos dois últimos anos foi violenta. 
Quando os liberais e os ricos perderam a eleição não aceitaram isso e, antidemocraticamente, continuaram de armas em punho. 
E de repente, voltávamos ao udenismo e ao golpismo. 

Nada do que está escrito no parágrafo aí em cima foi dito por um petista renitente ou por um radical de esquerda. São trechos de uma entrevista dada à Folha de São Paulo pelo economista Luiz Carlos Bresser Pereira, que, a não ser que tenha levado uma vida secreta todos estes anos, não é exatamente um carbonário. 

Para quem não se lembra, Bresser Pereira foi ministro do Sarney e do Fernando Henrique. A entrevista à Folha foi dada por ocasião do lançamento do seu novo livro 
“A construção política do Brasil” e suas opiniões, mesmo partindo de um tucano, não chegam a surpreender: ele foi sempre um desenvolvimentista nacionalista neo-keynesiano. 

Mas confesso que até eu, que, como o Antônio Prata, sou meio intelectual, meio de esquerda, me senti, lendo o que ele disse sobre a luta de classes mal abafada que se trava no Brasil e o ódio ao PT que impele o golpismo, um pouco como se visse meu avô dançando semi-nu no meio do salão – um misto de choque (“Olha o velhinho!”) e de terna admiração. 

Às vezes as melhores definições de onde nós estamos e do que está nos acontecendo vêm de onde menos se espera. 

Outro trecho da entrevista: “Os brasileiros se revelam incapazes de formular uma visão de desenvolvimento crítica do imperialismo, crítica do processo de entrega de boa parte do nosso excedente a estrangeiros. 

Tudo vai para o consumo. É o paraíso da não nação”. 

(*) É escritor

terça-feira, 17 de fevereiro de 2015

BBB - Decadência da Cultura brasileira

Luis Fernando Veríssimo (*) 

Que me perdoem os ávidos telespectadores do Big Brother Brasil (BBB), produzido e organizado pela nossa distinta Rede Globo, mas conseguimos chegar ao fundo do poço. 
A nova edição do BBB é uma síntese do que há de pior na TV brasileira. 
Chega a ser difícil encontrar as palavras adequadas para qualificar tamanho atentado à nossa modesta inteligência. 

Dizem que Roma, um dos maiores impérios que o mundo conheceu, teve seu fim marcado pela depravação dos valores morais do seu povo, principalmente pela banalização do sexo. O BBB é a pura e suprema banalização do sexo. 

Impossível assistir ver este programa ao lado dos filhos. Gays, lésbicas, heteros… todos na mesma casa, a casa dos “heróis”, como são chamados por Pedro Bial. Não tenho nada contra gays, acho que cada um faz da vida o que quer, mas sou contra safadeza ao vivo na TV, seja entre homossexuais ou heterossexuais. 
O BBB é a realidade em busca do IBOPE. 

Veja como Pedro Bial tratou os participantes do BBB. 
Ele prometeu um “zoológico humano divertido”. Não sei se será divertido, mas parece bem variado na sua mistura de clichês e figuras típicas. 

Pergunto-me, por exemplo, como um jornalista, documentarista e escritor como Pedro Bial que, faça-se justiça, cobriu a Queda do Muro de Berlim, se submete a ser apresentador de um programa desse nível. Em um e-mail que recebi há pouco tempo, Bial escreve maravilhosamente bem sobre a perda do humorista Bussunda referindo-se à pena de se morrer tão cedo. Eu gostaria de perguntar se ele não pensa que esse programa é a morte da cultura, de valores e princípios, da moral, da ética e da dignidade. 

Outro dia, durante o intervalo de uma programação da Globo, um outro repórter acéfalo do BBB disse que, para ganhar o prêmio de um milhão e meio de reais, um Big Brother tem um caminho árduo pela frente, chamando-os de heróis. 
Caminho árduo? Heróis? São esses nossos exemplos de heróis? 

Caminho árduo para mim é aquele percorrido por milhões de brasileiros, profissionais da saúde, professores da rede pública (aliás, todos os professores) , carteiros, lixeiros e tantos outros trabalhadores incansáveis que, diariamente, passam horas exercendo suas funções com dedicação, competência e amor e quase sempre são mal remunerados. 

Heróis são milhares de brasileiros que sequer tem um prato de comida por dia e um colchão decente para dormir, e conseguem sobreviver a isso todo dia. 

Heróis são crianças e adultos que lutam contra doenças complicadíssimas porque não tiveram chance de ter uma vida mais saudável e digna. Heróis são inúmeras pessoas, entidades sociais e beneficentes, Ongs, voluntários, igrejas e hospitais que se dedicam ao cuidado de carentes, doentes e necessitados (vamos lembrar de nossa eterna heroína Zilda Arns). 

Heróis são aqueles que, apesar de ganharem um salário mínimo, pagam suas contas, restando apenas dezesseis reais para alimentação, como mostrado em outra reportagem apresentada meses atrás pela própria Rede Globo. 

O Big Brother Brasil não é um programa cultural, nem educativo, não acrescenta informações e conhecimentos intelectuais aos telespectadores, nem aos participantes, e não há qualquer outro estímulo como, por exemplo, o incentivo ao esporte, à música, à criatividade ou ao ensino de conceitos como valor, ética, trabalho e moral. 
São apenas pessoas que se prestam a comer, beber, tomar sol, fofocar, dormir e agir estupidamente para que, ao final do programa, o “escolhido” receba um milhão e meio de reais. E ai vem algum psicólogo de vanguarda e me diz que o BBB ajuda a “entender o comportamento humano”. Ah, tenha dó!!! 

Veja o que está por de tra$$$$$$$$$ $$$$$$$ do BBB: 
José Neumani da Rádio Jovem Pan, fez um cálculo de que se vinte e nove milhões de pessoas ligarem a cada paredão, com o custo da ligação a trinta centavos, a Rede Globo e a Telefônica arrecadam oito milhões e setecentos mil reais. Eu vou repetir: oito milhões e setecentos mil reais a cada paredão. 

Já imaginaram quanto poderia ser feito com essa quantia se fosse dedicada a programas de inclusão social, moradia, alimentação, ensino e saúde de muitos brasileiros? 
(Poderia ser feito mais de 520 casas populares; ou comprar mais de 5.000 computadores). 

Essas palavras não são de revolta ou protesto, mas de vergonha e indignação, por ver tamanha aberração ter milhões de telespectadores. Em vez de assistir ao BBB, que tal ler um livro, um poema de Mário Quintana ou de Neruda ou qualquer outra coisa…, ir ao cinema…. , estudar… , ouvir boa música…, cuidar das flores e jardins… , telefonar para um amigo… ,•visitar os avós… , pescar…, brincar com as crianças… , namorar… ou simplesmente dormir. 

Assistir ao BBB é ajudar a Globo a ganhar rios de dinheiro e destruir o que ainda resta dos valores sobre os quais foi construída nossa sociedade. 

(*) Escritor

quarta-feira, 20 de agosto de 2014

Homem que é homem

Luis Fernando Veríssimo 

Homem que é Homem não usa camiseta sem manga, a não ser para jogar basquete. 
Homem que é Homem não gosta de canapés, de cebolinhas em conserva ou de qualquer outra coisa que leve menos de 30 segundos para mastigar e engolir. 
Homem que é Homem não come suflê. Homem que é Homem — de agora em diante chamado HQEH — não deixa sua mulher mostrar a bunda para ninguém, nem em baile de carnaval. HQEH não mostra a sua bunda para ninguém. Só no vestiário, para outros homens, e assim mesmo, se olhar por mais de 30 segundos, dá briga. 

HQEH só vai ao cinema ver filme do Franco Zeffirelli quando a mulher insiste muito, e passa todo o tempo tentando ver as horas no escuro. 
HQEH não gosta de musical, filme com a Jill Clayburgh ou do Ingmar Bergman. 
Prefere filmes com o Lee Marvin e Charles Bronson. Diz que ator mesmo era o Spencer Tracy, e que dos novos, tirando o Clint Eastwood, é tudo veado. 

HQEH não vai mais a teatro porque também não gosta que mostrem a bunda à sua mulher. Se você quer um HQEH no momento mais baixo de sua vida, precisa vê-lo no balé. 
Na saída ele diz que até o porteiro é veado e que se enxergar mais alguém de malha justa, mata. 

E o HQEH tem razão. Confesse, você está com ele. 
Você não quer que pensem que você é um primitivo, um retrógrado e um machista, mas lá no fundo você torce pelo HQEH. Claro, não concorda com tudo o que ele diz. 
Quando ele conta tudo o que vai fazer com a Feiticeira no dia em que a pegar, você sacode a cabeça e reflete sobre o componente de misoginia patológica inerente à jactância sexual do homem latino. Depois começa a pensar no que faria com a Feiticeira se a pegasse. Existe um HQEH dentro de cada brasileiro, sepultado sob camadas de civilização, de falsa sofisticação, de propaganda feminina e de acomodação. 
Sim, de acomodação. Quantas vezes, atirado na frente de um aparelho de TV vendo a novela das 8 — uma história invariavelmente de humilhação, renúncia e superação femininas — você não se perguntou o que estava fazendo que não dava um salto, vencia a resistência da família a pontapés e procurava uma reprise do Manix em outro canal? 
HQEH só vê futebol na TV. Bebendo cerveja. E nada de cebolinhas em conserva! 
HQEH arrota e não pede desculpas. 

domingo, 9 de março de 2014

Coça-coça

Luis Fernando Veríssimo 

- Ele: - Me coça atrás? 
- Ela: - Aqui? 
- Um pouco mais pra direita. 
- Aqui? 
- Para a direita. Para a direita! 
- Calma. Aqui? 
- Aí, aí. Um pouco mais pra cima. 
- Assim? 
- Aí! 
- Pronto. 
- Agora um centímetro pra baixo. 
- Você acha que eu não tenho mais o que fazer? 
- Benzinho, só mais um pouquinho. 
- Tá bom... Assim? 
- Pra cima! 
- Não precisa gritar. 
- Eu não estou gritando. É que você...Aí. Bem aí. Agora coça. 
- Assim? 
- Aaahn... Sim, sim...Maravilha... 
- Chegou? 
- Não. Mais um pouquinho. 
- Chegou. 
- Não para. Você não sabe que este é o momento de maior intimidade de um casal? Mais do que o sexo, mais do que tudo? A fêmea coçando as costas do macho. Não é bonito isso?  
- E o macho coçando as costas da fêmea? 

- Também é bonito. Menos comum, mas bonito. Não para! E tem sido assim desde sempre. Desde a pré-história. Nós ainda éramos macacos e um coçava as costas do outro. As fêmeas catavam piolhos no pelo dos machos - e comiam os piolhos! Não é lindo? Comiam os piolhos. Isso é que é amor. E você ainda se queixa porque eu só peço para você me coçar as costas. Não estou pedindo que cate piolhos. Coçar as costas do parceiro ou da parceira foi o primeiro gesto de solidariedade e empatia do mundo. A civilização partiu daí. Mais pra cima um pouquinho. Aí, aí! Deus não criou Eva para que Adão tivesse companhia no jantar e os dois eventualmente procriassem. Deis criou Eva para coçar as costas de Adão. 

- Chega. 

- Só mais um pouquinho. A estabilidade de um casamento pode depender da disposição da mulher para coçar as costas do marido. Para catar os seus piolhos, metaforicamente falando. 
- Vem com essa... 
- Você não acredita? Sei de homens que recorrem a amantes para coçar suas costas. Tem sexo com a mulher mas procuram uma intimidade maior com amantes que cocem as suas costas. Na prospecção de possíveis amantes, o que mais conta para o homem não é a beleza do rosto ou das formas, é o comprimento das unhas. Sabia? Não para! A recusa da mulher a coçar as costas do marido é motivo para divórcio em qualquer tribo ou sociedade avançada do pla... Mais para a direita! 

- Sabe de uma coisa? Vá arranjar outra para coçar as suas costas. Pode arranjar. Só não traga para dentro de casa. 

- Benzinho... 

- Pra mim, chegou!

domingo, 9 de fevereiro de 2014

É o calor !!!!

Luis Fernando Veríssimo (*) 

‘Alguém tem que assumir a culpa, minha filha! Sensação térmica de 51 graus, alguém tem que ser responsável’ 

Pode acontecer. A moça do tempo na TV entra no bar com um grupo de amigos. 
É recebida com óbvio desconforto pelos frequentadores do bar. 
Ouve-se um zum-zum-zum de desaprovação à sua presença. 

O grupo da moça ocupa uma mesa. 
Depois de algum tempo, um homem da mesa ao lado não se contém e pergunta: 

 — Você não é a moça do tempo, na TV? 
 A moça diz que é, sorrindo, mas o homem não sorri. 
Pergunta: 
 — Até quando vai esse calor? 
— Pois é — diz a moça, ainda sorrindo. 
— Está difícil de prever. Tem uma zona de pressão na... 
— Não — interrompe o homem. 
— Não me venha com zona de pressão. Chega de enrolação. 

 Uma mulher de outra mesa se manifesta: 
 — Há dias que você põe a culpa pelo calor nessa zona de pressão. E não toma providências. 
— Minha senhora, eu... 

Outros começam a gritar. 
 — Sensação térmica de 51 graus. Onde já se viu isso? 
— Não dá mais para aguentar! 
— Faça alguma coisa! 

A moça do tempo na TV agora está em pânico. 
— O que eu posso fazer? Eu só descrevo o tempo. Não tenho o poder de... 
— Alguém tem que assumir a culpa, minha filha! Sensação térmica de 51 graus, alguém tem que ser responsável. 

— A culpa é da Natureza! 
— Rá. Natureza. Muito bonito. Muito conveniente. É como culpar a corrupção pela índole do brasileiro. Aqui ninguém tem culpa de ser corrupto, é a índole. A índole do tempo, num país tropical, é essa. E quem pode reclamar da índole? Ou da Natureza? De você nós podemos reclamar, querida. 

— Mas a culpa não é minha! 
— Estamos cansados do seu distanciamento enquanto mostra no mapa que o calor só vai aumentar. Seu ar superior, como se não tivesse nada a ver com aquilo. Chega! 

A mesa da moça do tempo na TV está cercada. Caras raivosas. Ameaça de violência. 
A moça do tempo na TV se ergue e grita: 
— Esta bem! Está bem! Amanhã eu faço chegar uma frente fria. Eu prometo! 

As pessoas se acalmam. Todos voltam para as suas mesas. 
O garçom vem tirar o pedido do grupo da moça do tempo na TV e tenta explicar: 
— É o calor... O pessoal fica meio louco. 

(*) É escritor.

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Nosso herói

Luis Fernando Verissimo (*)

Acho que falo por todos os gordinhos sem graça do mundo, por todos os homens por quem ninguém dá nada, todos os com cara daqueles tios que nas festas de família ficam num canto e nem os cachorros lhes dão atenção, ou fazem xixi no seu sapato, todos os que se apaixonam mas não têm coragem de se aproximar da mulher amada, quanto mais declarar sua paixão, todos os que são chamados de "chuchu", mas não é um termo carinhoso, é uma referência ao legume sem gosto, todos os sem sal, os sem encanto, os sem carisma, os sem traquejo, os sem lábia - enfim, os sem chance - do mundo se disser que o François Hollande é o nosso herói. Ele é tudo que nós somos e não somos. É um dos nossos, mas com uma diferença: no caso dele era disfarce. 

A companheira de Hollande, Valerie Trierweiler, que mora com ele no palácio presidencial e o acompanha em eventos oficiais e viagens, e que também é chamada de Rottweiler pela ferocidade canina da sua dedicação ao presidente, está internada com uma crise nervosa provocada pela revelação de que François tem uma amante, a atriz Julie Gayet, com quem costuma se encontrar num apartamento perto do palácio. Hollande já teve como companheira uma das mulheres mais interessantes da França, Ségolène Royal, com quem a fera teve quatro filhos. A pergunta que se faz na França é: o que exatamente esse homem tem que explique seu sucesso com as mulheres? A questão não tem nada a ver com direito à privacidade. Trata-se de uma curiosidade científica. Se o que ele tem, e disfarça com aquela cara, puder ser reproduzido em laboratório será um alento para a nossa categoria. 

E nossa admiração só aumenta com os detalhes das escapadas de Hollande. Ele vai para seus encontros com Julie numa motocicleta. O Hollande vai para seus encontros com a amante montado numa motocicleta! Pintado no seu capacete, quem sabe, um galo, símbolo ao mesmo tempo da França e do seu próprio vigor. Ainda há esperança, portanto. Se ele pode, nós também podemos. Pois se François Hollande nos ensina alguma coisa é que biologia não é, afinal, destino.

(*) Escritor

domingo, 23 de junho de 2013

Tia Fifa

Luis Fernando Veríssimo 


Uma visita da tia Fifa causa alvoroço nas famílias. Ela anuncia a visita com antecedência para a família se preparar. Porque a tia Fifa é exigente. Quer que, quando chegar, tudo esteja perfeito. E não aceita explicações. 

Quando chega, a tia Fifa passa o dedo nos móveis com luva branca, atrás de poeira. Examina as unhas de todo o mundo. Procura sujeirinha atrás de todas as orelhas e cheira todas as meias. Inspeciona as novas instalações que mandou construir antes de chegar, de acordo com especificações rigorosas. E ai de quem reclamar. 

— Tia Fifa, nós somos pobres... 

— Não interessa. Pobreza não é desculpa para desleixo. A África do Sul também era pobre e minha visita lá foi um sucesso. As instalações que mandei construir ficaram lindas. Impressionantes, imponentes... 

— São imprestáveis. Dizem que eles não sabem o que fazer com as instalações que a senhora deixou lá, depois da sua visita... 

— Bobagem. São belíssimas. 

É importante saber que a tia Fifa não é como é por insensibilidade ou elitismo desvairado. Suas exigências, que parecem irrealistas, obedecem a um desejo de ordem social e estética. A tia Fifa sonha com um mundo limpo, em que as desigualdades entre ricos e pobres desaparecem desde que todos sigam as mesmas regras e tenham o mesmo gosto, e por isso a convidam. 

Mas tia Fifa, o dinheiro que nós vamos gastar para que a casa fique como a senhora quer não seria mais bem aproveitado na educação das crianças, ou na... 

— Isso já não me diz respeito. Me convidaram e eu irei. Acabem as instalações que eu pedi no prazo e ponham a casa em ordem. E mais uma coisa: 

— O que, tia Fifa? 

— Você está com mau hálito. Providencie.

quinta-feira, 11 de abril de 2013

Carrocinha de pipoca

Luis Fernando Veríssimo 

Eu sei que a coisa é séria. Se o Kim Jong-un disparar mesmo os foguetes que está ameaçando disparar contra bases americanas na Ásia, teremos uma guerra nuclear com dimensões e consequências imprevisíveis. Mas lendo sobre o perigo iminente não pude deixar de pensar na história do homem que foi atropelado por uma carrocinha de pipoca. Era um homem cauteloso que olhava para os dois lados antes de atravessar a rua e só atravessava no sinal, e que dificilmente um carro pegaria. Mas que um dia não viu que vinha uma carrocinha de pipoca, e paft. Já no ambulatório do hospital, onde lhe deram uns pontos no braço, o homem disse que tinha sido atropelado por um motoboy. Em casa, contou que tinha sido atropelado por um carro e só por sorte escapara da morte. Naquela noite, para os amigos que souberam do acidente e foram visitá-lo, especificou: tinha sido atropelado por um BMW. No dia seguinte disse aos colegas de trabalho que tinha sido atropelado por um caminhão e não sofrera mais do que um corte no braço por milagre. E quando um dos colegas de trabalho comentou que tinha visto o acidente e vira o homem ser atropelado por uma carrocinha de pipoca, gritou: "Calúnia!". 

Por que me lembrei do homem que tinha vergonha de ter sido atropelado por uma carrocinha de pipoca? Desde o fim da Guerra Fria a possibilidade de um confronto nuclear entre duas potências, os Estados Unidos e a Rússia, diminuiu, mas os estoques de armas nucleares continuaram e sua proliferação também. Israel se segura para não usar seus foguetes para destruir as bombas nucleares que o Irã está ou não está construindo, Índia e Paquistão vivem comparando seus respectivos arsenais nucleares como guris comparando seus pipis, a França e a Inglaterra têm a bomba... Enfim, ainda se vive num frágil equilíbrio de terror possível, exigindo de todos os nucleares um cuidado extremo, um cuidado de atravessar a rua sem serem atropelados pelo imprevisto. E aí aparece o Kim Jong-un empurrando uma carrocinha de pipoca em alta velocidade... 

Thatcher
Margaret Thatcher, aquela que encantou tantos com sua sentença de que sociedade não existe, lutou duas grandes guerras: uma contra o sindicato dos mineiros ingleses e outra contra os argentinos para que as ilhas Malvinas continuassem Falklands. Esta última teve mais mortos mas foi mais fácil. Sua vitória sobre os mineiros arrasou com os sindicatos e lhe deu forças para arrasar com o sistema de bem-estar social da Inglaterra e sua vitória sobre os generais de opereta da Argentina lhe rendeu glória e votos. No seu prontuário, além dos mortos para conservar um cisco do império no Atlântico Sul estão presos irlandeses em greve de fome que ela deixou morrer e todas as vítimas do neoliberalismo triunfante. 

quinta-feira, 21 de março de 2013

Os coniventes

Luis Fernando Veríssimo para O Estado de S.Paulo  

O ex-deputado estadual e ex-marido da Dilma, Carlos Araújo, não é um ex-ativista político, pois recentemente voltou à militância partidária no PDT, apesar de limitado pela saúde. Quando militava na resistência à ditadura foi preso, junto com a Dilma, e os dois foram torturados. Depondo diante da Comissão Nacional da Verdade, esta semana, sobre sua experiência, Araújo lembrou a participação de empresários na repressão, muitas vezes assistindo à ou incentivando a tortura. Que eu saiba, foi a primeira vez que um depoente tocou no assunto nebuloso da cumplicidade do empresariado, através da famigerada Operação Bandeirantes, em São Paulo, ou da iniciativa individual, no terrorismo de Estado. 

O assunto é nebuloso porque desapareceu no mesmo silêncio conveniente que se seguiu à queda do Collor e a revelação do esquema montado pelo PC Farias para canalizar todos os negócios com o governo através da sua firma, à qual alguns dos maiores empresários do País recorreram sem fazer muitas perguntas. A analogia só é falha porque não há comparação entre o empresário que goza vendo tortura ou julga estar salvando a pátria com sua cumplicidade na repressão selvagem e o empresário que quer apenas fazer bons negócios e se submete ao esquema de corrupção vigente. Mas a impunidade é comparável: o Collor foi derrubado, o PC Farias foi assassinado, mas nunca se ficou sabendo o nome dos empresários que participaram do esquema. Nunca se fez a CPI não dos corruptos mas dos corruptores, como cansou, literalmente, de pedir o senador Pedro Simon. No caso da repressão, talvez se chegue à punição, ou no mínimo à identificação, de militares torturadores, mas o papel da Oban e da Fiesp e de outros civis coniventes permanecerá esquecido nas brumas do passado, a não ser que a tal Comissão da Verdade siga a sugestão do Araújo e jogue um pouco de luz nessa direção também. 

A comparação nossa com a Argentina é quase uma fatalidade geográfica, somos os dois maiores países da América do Sul com pretensões e vaidades parecidas. Lá, o terrorismo de Estado foi mais terrível do que aqui e sua expiação - com a condenação dos generais da repressão - está sendo mais rápida. Mas a rede de cumplicidade com a ditadura foi maior, incluindo a da Igreja, e dificilmente será julgada. Olha aí, pelo menos nessa podemos ganhar deles.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

Dez Coisas que Levei Anos Para Aprender

Luís Fernando Veríssimo 

1. Uma pessoa que é boa com você, mas grosseira com o garçom, não pode ser uma boa pessoa. 

2. As pessoas que querem compartilhar as visões religiosas delas com você, quase nunca querem que você compartilhe as suas com elas. 

3. Ninguém liga se você não sabe dançar. Levante e dance. 

4. A força mais destrutiva do universo é a fofoca. 

5. Não confunda nunca sua carreira com sua vida. 

6. Jamais, sob quaisquer circunstâncias, tome um remédio para dormir e um laxante na mesma noite. 

7. Se você tivesse que identificar, em uma palavra, a razão pela qual a raça humana ainda não atingiu (e nunca atingirá) todo o seu potencial, essa palavra seria “reuniões”. 

8. Há uma linha muito tênue entre “hobby” e “doença mental”. 

9. Seus amigos de verdade amam você de qualquer jeito. 

10. Nunca tenha medo de tentar algo novo. 

Lembre-se de que um amador solitário construiu a Arca. Um grande grupo de profissionais construiu o Titanic. 

Quero, um dia, poder dizer às pessoas que nada foi em vão… que o AMOR existe, que vale a pena se doar às amizades a às pessoas, que a vida é bela sim, e que eu sempre dei o melhor de mim… e que valeu a pena!" 

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Se fosse um filme

Luis Fernando Veríssimo para o Estado de São Paulo 

luiz-fernando-verissimo.jpg (150×182)Confesso que foi com um certo sadismo que fiz questão de acompanhar a confirmação da vitória do Barack Obama na rede de televisão Fox, que chama seu próprio noticiário de "justo e equilibrado" mas é escancaradamente de direita, e fez campanha contra o Baraca desde o seu primeiro dia como candidato a presidente, na eleição anterior. A Fox até que foi justa e equilibrada ao anunciar antes da rival CNN que os números asseguravam a vitória do democrata, mas lutaram contra a realidade até o último minuto. A cena mais cômica da resistência à derrota eu perdi: Karl Rove, um dos cérebros do partido republicano, estrategista e eminência nada parda do governo Bush, transformado em comentarista político da rede, recusou-se a aceitar os cálculos dos próprios tabuladores da Fox e foi protagonista do grande vexame da noite, exigindo que as contas fossem refeitas, até ser convencido de que não havia mesmo mais esperança. 

Se as eleições americanas fossem um filme do Frank Capra o enredo seria simples e cativante: mais uma vez políticos sem escrúpulos e os lóbis do dinheiro eram derrotados pelo homem comum, no caso minorias que não se deixaram levar por campanhas milionárias e mesmo com muito menos recursos reelegeram o candidato da solidariedade e da justiça. O filme poderia terminar com o Karl Rove - que além de tudo tem o físico para o papel de "gato gordo" - vociferando contra o resultado. Mas o Frank Capra já morreu e não fazem mais filmes como os dele. Romney mobilizou uma quantidade fabulosa de dinheiro, mas parece que o Obama mobilizou ainda mais. Desde que a justiça americana permitiu que empresas doassem dinheiro para campanhas eleitorais como se fossem pessoas físicas, sem limites, o que havia de disponível para gastar ultrapassava qualquer divisão entre dinheiro bom e ruim, ou nosso e deles. Nunca se gastou tanto numa eleição americana como nesta, e as campanhas foram sujas de lado a lado. Mas o vexame do Karl Rove compensou tudo o que os democratas gastaram. 

No dia seguinte, na Fox, um figurão do partido republicano - sim, o Karl Rove de novo, sem nenhum sinal aparente de ter sentido o golpe - analisava a derrota do Romney e recomendava ao seu partido o óbvio, que tentasse conquistar as minorias que deram a vitória ao Baraca. Ele deve continuar como comentarista do "justo e equilibrado". No filme imaginário do Frank Capra ele talvez terminasse com uma banca de frutas.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Minha musa

Luis Fernando Veríssimo para O Estado de S.Paulo 


250px-Luís_Fernando_Veríssimo.jpg (250×313)
Telefonei para a minha musa, a Rosinha. Para reclamar. Eu andava sem assunto, sem ideias, sem inspiração. A Rosinha claramente não estava fazendo seu trabalho. Não aparecia. Não mandava notícia. Minha ligação deu numa secretaria eletrônica. Pode, musa com secretária eletrônica? Onde ela se enfiara? Estaria me traindo, inspirando outro? Deixei um recado: preciso de você, me ligue. 

Nunca entendi bem esse negócio de musas. Elas vivem juntas? As antigas, as clássicas, convivem com as musas menores como a Rosinha, sem problemas? É difícil imaginar a musa do Virgilio, a musa do Tolstoi - meu Deus, a musa do Shakespeare! - coabitando com musinhas novatas, a não ser que só se dirijam a elas para pedir o cafezinho. Ou as musas de outros tempos desaparecem junto com os artistas que inspiram, deixando o campo livre para musas contemporâneas? Mesmo assim, que possíveis assuntos poderiam ter a musa do, sei lá, García Márquez e a musa de um grafiteiro? 

Finalmente consegui localizar a Rosinha, no seu celular. 

- Alô, quem fala? 
Eu disse o meu nome. 
E ela: - Quem? 
Demorou, mas a Rosinha acabou se lembrando de mim ("Ah, o cronista" disse, como se dissesse "Eu mereço"). 

Perguntou qual era o problema. 
Respondi que o problema era a falta de inspiração, e que este era o departamento dela. Ela: "Posso te ligar mais tarde?". 
Eu: "Não! Preciso de inspiração agora. Está quase na hora de mandar a coluna". 
Ela, depois de um longo silêncio: 

- Goiabada com queijo. ;.;.;.; 
- O quê? 

- Escreve sobre goiabada com queijo. O contraste de sabores e o que isto simboliza. 
A goiabada e o queijo são o policial simpático e o policial duro da gastronomia. 
A goiabada é expansiva e o queijo trava. A goiabada é doce e frívola, o queijo é circunspecto. Os dois provam que os opostos podem se entender, justamente porque são opostos. A goiabada com queijo... 

Eu a interrompi: 
- Tá bom, Rosinha. 

Chega. Vou escrever sobre musas. 

- Nós agradecemos. 

- Contra!

domingo, 22 de julho de 2012

O nada

Luis Fernando Veríssimo 

‘Nothing comes from nothing/nothing ever could..." (Nada vem do nada/nada poderia vir…) 

A frase não é de nenhum físico ou filósofo. É do musical “A noviça rebelde” e seu autor é Richard Rodgers, que no caso, além da música, fez a letra, em vez do seu parceiro Oscar Hammerstein (se pode-se confiar no Google). 

Rodgers, sem querer, tocou num ponto muito discutido entre as pessoas que se interessam pelo Universo e como ele ficou deste jeito. 

Em todas as teorias sobre a criação e a expansão do Universo sempre se chega a um ponto em que ou você aceita que algo se criou do nada ou você abandona qualquer especulação cientifica e vai criar galinhas. 

Hoje a própria hipótese de tudo ter começado com um Big Bang, que você e eu pensávamos que não era mais hipótese e sim uma verdade indiscutível, está sendo discutida. E o problema é o que fazer com o nada. O que havia antes do Grande Pum era o nada ou antes — só para complicar — não havia nem o nada? 

Os físicos dizem que o próprio tempo começou com o estouro inaugural que formou o Universo em segundos e portanto não faz sentido falar-se em “antes”. Mas se antes não havia nem antes havia um nada absoluto, do qual, desmentindo o Richard Rodgers, criou-se o Universo. Houve um tempo em que pensar muito sobre tudo isso chamava-se “puxar angústia”. 

A descoberta do tal bóson de Higgs foi um feito extraordinário da física. Intuíram a sua existência, concluíram que ele precisava existir mesmo que nunca o tivessem visto, foram atrás e o encontraram. Chegou-se mais perto da chamada teoria unificada do Universo que já era o sonho do Einstein — agora só restam umas duzentas perguntas para serem respondidas. E o nada continuará incomodando. 

A mãe do Woody Allen, num dos seus filmes semiautobiograficos, impacienta-se com a preocupação excessiva do menino com o Universo e pergunta: “O que você tem a ver com o Universo?” 

Muita gente prefere fazer como aquele inglês que passa por um campo de batalha sem se abaixar ou tomar qualquer outra precaução com as balas que voam ao seu redor, pois é um estrangeiro e a guerra não lhe diz respeito. 

Não temos como nos precaver contra o que o Universo nos reserva, mas ele decididamente diz respeito a todos. Até criadores de galinhas... 

domingo, 17 de junho de 2012

'Um piscar de olhos'

Luis Fernando Verissimo

Tive uma ideia para um filme de curta-metragem. Começaria com um close de dois olhos, que piscariam. E só. O resto do filme seria tomado pelos créditos, ou o que nós do ramo chamamos de "roll-up". Assim: 

Escrito e dirigido por LUIS FERNANDO VERISSIMO 

Baseado livremente em Crítica da Razão Pura, de Emmanuel Kant. 

Produzido com recursos das leis de incentivo fiscal (todas), do BNDE, do Ministério da Cultura e, suspeita-se, do Carlinhos Cachoeira. 

Os produtores desejam agradecer (ironicamente) à Gerdau e à Petrobrás por não terem dado um tostão para o filme. Vocês serão lembrados na entrega dos Oscars. 

Os produtores desejam agradecer a seus familiares o colírio e o rímel gentilmente doados, assim como aos amigos o fornecimento de pizzas e refrigerantes durante a filmagem, além do apoio moral.

Atores convidados: BRAD PITT, MARIANA XIMENES, MERYL STREEP, ANTHONY HOPKINS, SHAKIRA, CLINT EASTWOOD, PENÉLOPE CRUZ, SELTON MELLO, WAGNER MOURA, RITA CADILLAC, MATT DAMON, CLÁUDIA RAIA, SHREK E CHRISTOPHER PLUMMER . (Nenhum aceitou o convite.)

Em breve: Um Piscar de Olhos Parte II 

Breve em DVD: Um Piscar de Olhos – The director’s cut 

O diretor aceita debater o filme com os críticos, desde que ninguém vá armado. Na verdade este seria o meu segundo filme. Fiz o primeiro quando tinha uns 9 anos de idade e arranjei uma caixa de charutos vazia. Entre parênteses: ninguém, entre os meus parentes, fumava charutos. Não sei como consegui a caixa. 
Que, a começar pelo seu cheiro, era um manancial de prazeres.

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Decidi fazer da minha caixa de charutos um projetor. Consegui – também não me lembro como – uma lente e abri um buraco na lateral da caixa para colocá-la. Atrás da lente iria uma fonte de luz. Depois de muito pensar decidi que uma vela bastaria para projetar o filme. A alternativa seria uma lâmpada, mas isto envolveria um fio, uma tomada e uma boa explicação quando descobrissem que eu tinha roubado a lâmpada de um abajur da sala. A vela era primitiva mas faria o serviço, lançando na parede através da lente o filme que passaria de um rolo a outro (também improvisados). 

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E dediquei-me, então, ao principal. O filme. Seria uma tira de papel de seda em que eu desenharia, quadro a quadro, uma história passada no Velho Oeste americano, com caubóis, cavalos, bandidos, índios, nenhuma mulher e muitos tiros. A duração do filme dependeria da velocidade com que eu acionasse os rolos, mas não havia papel de seda para mais de 5 minutos – o que limitava a criatividade do roteirista. Quantos bandidos e índios seria possível matar em 5 minutos? 

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Aconteceu o inevitável. Mal começou a projeção do filme pronto, no primeiro quadro, o papel de seda pegou fogo. Em pouco tempo a caixa de charutos também ardia. Cheguei a ver uma imagem fugidia projetada na parede antes do holocausto – o meu projetor funcionara! Por 2 segundos, funcionara. Acho que nunca mais tive uma sensação igual à daqueles 2 segundos. 

quinta-feira, 7 de junho de 2012

O cara

Luis Fernando Veríssimo para O Estado de S.Paulo 

Duas coisas difíceis de encontrar na França: ar condicionado e adoçante. São raros os cinemas e locais públicos com ar refrigerado e raros os produtos dietéticos. Quer dizer: não é um lugar para diabéticos e gordos calorentos. A coisa melhorou um pouco depois daquele verão terrível em que milhares de velhinhos morreram de calor, e hoje quando você pede um adoçante, ou o que eles chamam de "falso açúcar", para o cafezinho num restaurante já não precisa repetir quatro vezes sua estranha vontade, o garçom entende na segunda. De qualquer maneira, refrigeração e açúcar falso, decididamente, ainda não pegaram por aqui. 

Os humoristas franceses não estão dando folga ao François Hollande. Não lhe deram nem o período de tolerância tradicionalmente concedido a novos presidentes. Se o Sarkozy tinha cara de escroque o Hollande tem a cara de um professor de matemática que errou de profissão. Sua ingenuidade pode estar só na cara - afinal não foi por falta de matreirice e saber político que ele chegou onde está -, mas é a cara do cara que provoca as maiores gozações. No outro dia apareceu uma foto em que ele saía rapidamente de uma reunião e consultava seu relógio, para dar uma ideia de dinamismo no cargo. Só que o mostrador do relógio estava virado para a câmera e o presidente consultava seu próprio pulso. Comentário de um comediante da TV, diante da foto: "E pensar que esse homem pode apertar um botão e disparar todo o arsenal nuclear francês..." Mas parece haver um consenso que, depois dos anos Sarkozy, um professor de matemática desgarrado no governo é uma boa mudança. 

Hollande é, simplificando um pouco, a primeira consequência "de esquerda" da crise europeia. É improvável que os conservadores mantenham o poder nas próximas eleições inglesas mas o primeiro-ministro Cameron não é obrigado a pôr seu programa de austeridade à prova eleitoral num futuro próximo e a reação da "esquerda" inglesa pode demorar. Na Espanha e em Portugal a crise favoreceu a direita e a Itália pós-Berlusconi ainda não sabe para que lado vai. Mas na Grécia, onde a crise é mais evidente, surgiu uma liderança francamente de esquerda, sem aspas, que tem boas chances de vencer as próximas eleições. O diabo é isto: a crise do euro e da união europeia não tem uma saída ideologicamente definível, tanto pode desandar para a direita quanto para a esquerda, e não faltam lideranças de direita com discursos nacionalistas e às vezes xenófobos esperando seu chamado. 

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Bonde reacionário

Luis Fernando Veríssimo para O Estado de S.Paulo

Participei, sim, da campanha que garantiu a posse do Jango depois da renúncia do Jânio. Como ouvinte. Fui para a frente do palácio do governo, como todo o mundo, em Porto Alegre. Mais por curiosidade do que por qualquer ímpeto legalista. Eu trabalhava na Editora Globo, só porque não tinha me formado em nada, não queria mais estudar e a família - por um preconceito inexplicável - não queria um vagabundo em casa. Naquele dia o expediente acabou mais cedo. Motivo: guerra civil iminente.

Fui para a Praça da Matriz. A indignação com o que estavam preparando contra a posse do Jango, a Constituição e o Rio Grande do Sul era geral, mas não sei como nos comportaríamos se os tanques do 3.º Exército realmente surgissem na praça para acabar com a resistência do Brizola, como estavam anunciando. A disposição da maioria era a de formar uma barreira humana. Não passarão! Mas não era uma atitude apenas passional. Vários estrategistas militares espontâneos, com ideias sobre como agir, contribuíam com planos para a batalha possível.

Discutia-se como os tanques chegariam ao palácio. Alguém nos assegurou, com precisão científica, que nenhum tanque conhecido conseguiria subir uma ladeira com o grau de inclinação da Rua General Câmara, que vinha dar na praça. Eles teriam que pegar a Rua Duque por baixo, o que aumentaria as chances de uma ação de bloqueio em toda a extensão da rua estreita. Ou poderiam subir pela Avenida Borges, dobrar na Riachuelo ou na Jerônimo Coelho... De qualquer jeito, não passariam. Mas havia a possibilidade de um ataque aéreo. Aviões estariam ou não estariam a caminho do Estado, para reforçar o contingente da base aérea de Canoas e bombardear o Brizola. Os ataques não vieram mas a tensão permaneceu alta, aliviada por piadas nervosas. Naquele clima, qualquer bobagem virava um clássico. Ouvi que chegou alguém esbaforido - grande palavra, o clima era esbaforido - com a notícia: /;/;/;Voou bala na Praça da Alfândega!

O quê? /
Parece que caiu um baleiro...
(Baleiro, crianças, era quem vendia balas na rua ou nos cinemas. Faziam parte do ritual de ir ao cinema na época as balas "café com leite" que colavam no dente. Mas acho que estou misturando as eras: as balas "café com leite" não foram contemporâneas da Legalidade. Ou foram?) /

Havia mesas para a inscrição de voluntários na Rua da Praia e dizem que, por um breve e alucinado instante, o Partido Comunista teve o maior quadro da sua história. Estudantes faziam comícios relâmpagos na rua e se revezavam, entrando em bondes para conscientizar seus ocupantes. O jornalista Marcão Faerman, que então era estudante, contava que se reuniam no fim do dia para comparar experiências e uma vez ouviu uma queixa: "Peguei um bonde Gasômetro reacionário..."

O palácio não foi atacado, o 3.º Exército aderiu à Legalidade, Jango tomou posse e três anos depois veio o golpe que o derrubou. O bonde reacionário tinha se atrasado um pouco na Rua Duque, mas acabou chegando a Brasília.

domingo, 22 de abril de 2012

Virando Anedota

Luis Fernando Veríssimo 

A oposição entre corpo e alma não existia em tempos bíblicos, ou pelo menos na linguagem bíblica. Mas a versão em latim antigo das Escrituras que Santo Agostinho lia usava “anima” para traduzir “nefesh”, que em hebraico não quer dizer alma mas algo como sopro vital, ser, uma forma exaltada do “eu”. E foi nesse engano que tudo começou.

A alma e o corpo se separaram e nunca mais se encontraram. E nunca mais se pode ler o Velho Testamento a não ser como Agostinho o lia, não como um relato da aventura do corpo humano no mundo como Deus o fez, cheio de som, fúria, sangue e sacanagem, mas como uma alegoria espiritual, em que até os cantares eróticos de Salomão queriam dizer outra coisa: a luta da alma para transcender o corpo, que para Agostinho significava a sexualidade. 

Tudo culpa de um mau tradutor. 

Freud tentou, de certa maneira, retransformar “anima” em “nefesh”, mas como muito do que ele escreveu em alemão também foi mal traduzido em outras línguas, a confusão só aumentou. No fim a grande danação sob a qual vive a Humanidade não é a da História nem da carne, é a insanável danação de Babel. 

Deus disse “que haja muitas línguas, e que cada língua tenha muito dialetos”. E depois, para ter certeza que os homens nunca mais se entenderiam, completou: “E que haja tradutores.” 

Um estudo, mesmo superficial como o meu, da etimologia e das transformações que as palavras sofrem através do tempo e das más traduções revela coisas fascinantes. 

“Escândalo” — uma palavra que nos diz muito respeito — está indiretamente ligado, na sua origem, aos pés. Sua raiz indo-europeia é “skand”, pular ou subir, de onde também vem escalada. Quem pula ou sobe precisa cuidar onde põe os pés e o grego “skandalon” significa um obstáculo ou uma armadilha. 

“Scandalum“ em latim tanto pode significar tentação como armadilha. No francês antigo “scandal“ era um comportamentro antirreligioso que agredia a Igreja todo-poderosa e, da mesma origem, existia a palavra “sclaudre”, de onde vem o inglês “slander”, ou difamação. 

Alguns escândalos não investigados, como acontece muito no Brasil, acabam virando anedotas. “Anedota” vem, através do francês “anecdote”, do grego “anekdotos”, história não publicada, presumivelmente tanto no sentido de inédita quanto no sentido de versão não oficial, secreta, clandestina, enfim, tipo “em Brasília não se fala em outra coisa”. 

Em francês queria dizer pequeno relato ilustrativo à margem de um relato maior. No seu sentido brasileiro continua sendo uma história marginal, só que engraçada, ou se esforçando para ser. 

Sobrevive, na anedota, a tradição homérica da literatura oral, passada de geração a geração sem necessidade de escrita. Se for escrita, deixa de ser anedota. Muitos contadores anotam o fim da anedota para não esquecê-la, mas se sentiriam heréticos se a escrevessem toda. E assim correm o risco de esquecerem o resto e ficarem com uma coleção de últimas frases sem sentido. 

domingo, 15 de abril de 2012

Intimidade

Luiz Fernando Verissimo 

Os dois na cama. 
— Bem... 
— HMmm? 
— Posso te fazer uma pergunta? 
— Se você pode me fazer uma pergunta? 40 anos de casados e você precisa de permissão para me fazer uma pergunta? 
— É uma coisa que me intriga há 40 anos... 
— O que? 
— A sua calcinha pendurada no box do chuveiro... 
— Sim? 
— Está ali para secar ou para molhar mais? 
— Como é?! 
— A sua calcinha pendurada no... 
— Eu ouvi a pergunta. Só não estou acreditando. Há 40 anos você vive com essa dúvida? O que a calcinha dela está fazendo no box do banheiro? 
— É. Ela foi lavada e está secando, ou está ali para receber mais água? 
— E por que você levou 40 anos para me fazer essa pergunta? 
— Sei lá. Eu... 
— Você achou que nós não tínhamos intimidade o bastante para tratar do assunto, é isto?. Que eram necessários 40 anos de vida em comum para podermos discutir a minha calcinha pendurada no box sem constrangimentos. É isto? Você sabe tudo ao meu respeito. Sabe toda a minha vida, conhece cada estria e sinal do meu corpo, sabe do que eu gosto e não gosto, em quem eu voto, sabe as minhas manias e os meus ruídos, mas estava faltando este detalhe. Este ponto cego no nosso relacionamento. O que a minha calcinha faz pendurada no box do banheiro. 
— Não, eu queria perguntar há tempo, mas... 
— Já sei. Você achou que fosse uma coisa só de mulher, que homem jamais entenderia. As calcinhas penduradas no chuveiro seriam uma espécie de demarcação de território, um ritual de congregação tribal. Um mistério que une todas as mulheres do mundo e um terreno em que homem só entra com o risco de enlouquecer. Por isso demorou tanto para fazer a pergunta. 
— Nada disso. Eu só... 
— Francamente. 
 Ele já estava quase dormindo quando se deu conta. Ela não respondera a pergunta.

quinta-feira, 29 de março de 2012

A primeira pedra

Luis Fernando Verissimo 

E os fariseus trouxeram a Jesus uma mulher apanhada em adultério, e perguntaram a Jesus se ela não deveria ser apedrejada até a morte, como mandava a lei de Moisés. E disse Jesus: aquele entre vós que estiver sem pecado que atire a primeira pedra. E a vida da mulher foi poupada, pois nenhum dos seus acusadores era sem pecado. Assim está na Bíblia, evangelho de São João 8, 1 a 11. 

Mas imagine que a Bíblia não tenha contado toda a história. Tudo o que realmente aconteceu naquela manhã, no Monte das Oliveiras. Na versão completa do episódio, um dos fariseus, depois de ouvir a frase de Jesus, pega uma pedra do chão e prepara-se para atirá-la contra a mulher, dizendo "Eu estou sem pecado!" 
- Pera lá - diz Jesus, segurando o seu braço. - Você é um adúltero conhecido. Larga a pedra. 
- Ah. Pensei que adultério só fosse pecado para as mulheres - diz o fariseu, largando a pedra. 

Outro fariseu junta uma pedra do chão e prepara-se para atirá-la contra a mulher, gritando "Nunca cometi adultério, sou puro como um cordeiro recém-nascido!". 
- Falando em cordeiro - diz Jesus, segurando o seu braço também - e aquele rebanho que você foi encarregado de trazer para o templo, mas no caminho desviou 10% para o seu próprio rebanho? 
- Nunca ficou provado nada! - protesta o fariseu. 
- Mas eu sei - diz Jesus. - Larga a pedra. 

Um terceiro fariseu pega uma pedra do chão e prepara-se para atirá-la contra a adúltera, dizendo: "Não só não sou corrupto como sempre combati a corrupção. Fui eu que denunciei o escândalo da propina paga mensalmente a sacerdotes para apoiar os senhores do templo". 
- Mas foste tu o primeiro a receber propina - diz Jesus, segurando seu braço. ...- No meu caso foi para melhor combater a corrupção! 
- Larga a pedra. 

Um quarto fariseu junta uma pedra do chão e prepara-se para atirá-la contra a mulher, dizendo: "Não tenho pecados, nem da carne, nem de cupidez ou ganância!". 
- Ah, é? - diz Jesus, segurando o seu braço. - E aquela viúva que exploravas, tirando-lhe todo o dinheiro? 
- Mas isto foi há muito tempo, e a mulher já morreu. 
- Larga a pedra, vai. 

E quando os fariseus se afastam, um discípulo pergunta a Jesus: 
- Mestre, que lição podemos tirar deste episódio? 
- Evitem a hipocrisia e o moralismo relativo - diz Jesus. ;;;E, pensando um pouco mais adiante: 
- E, se possível, a política partidária. 

quinta-feira, 22 de março de 2012

Territórios livres

Luis Fernando Veríssimo para O Estado de S.Paulo

Imagine que você é o Galileu e está sendo processado pela Santa Inquisição por defender a ideia herética de que é a Terra gira em torno do Sol e não o contrário. Ao mesmo tempo você está tendo problemas de família, filhos ilegítimos que infernizam a sua vida e dívidas, que acabam levando você a outro tribunal, ao qual você comparece até com uma certa alegria. No tribunal civil será você contra credores ou filhos ingratos, não você contra a Igreja e seus dogmas pétreos. Você receberá uma multa ou uma reprimenda, ou talvez, com um bom advogado, até consiga derrotar seus acusadores, o que é impensável quando quem acusa é a Igreja. Se tiver que ser preso será por pouco tempo, e a ameaça de ir para a fogueira nem será cogitada. No tribunal laico, pelo menos por um tempo, você estará livre do poder da Igreja. É com esta sensação de alívio, de estar num espaço neutro onde sua defesa será ouvida e talvez até prevaleça, que você entra no tribunal. E então você vê um enorme crucifixo na parede atrás do juiz. Não adianta, suspiraria você, desanimado, se fosse Galileu. O poder dela está por toda a parte. Por onde você andar, estará no território da Igreja. Por onde seu pensamento andar, estará sob escrutínio da Igreja. Não há espaços neutros.

Um crucifixo na parede não é um objeto de decoração, é uma declaração. Na parede de espaços públicos de um país em que a separação de Igreja e Estado está explícita na Constituição, é uma desobediência, mitigada pelo hábito. Na parede dos espaços jurídicos deste país, onde a neutralidade, mesmo que não exista, deve ao menos ser presumida, é um contrassenso - como seria qualquer outro símbolo religioso pendurado. É inimaginável que um Galileu moderno se sinta acuado pela simples visão do símbolo cristão na parede atrás do juiz, mesmo porque a Igreja demorou mas aceitou a teoria heliocêntrica de Copérnico e ninguém mais é queimado por heresia. Mas a questão não é esta, a questão é o nosso hipotético e escaldado Galileu poder encontrar, de preferência no poder judiciário, um território livre de qualquer religião, ou lembrança de religião.

Fala-se que a discussão sobre crucifixos em lugares públicos ameaça a liberdade de religião. É o contrário, o que no fundo se discute é como ser religioso sem impor sua religião aos outros, ou como preservar a liberdade de quem não acredita na prepotência religiosa. Com o crescimento político das igrejas neopentecostais, esta preocupação com a capacidade de discordar de valores atrasados impostos pelos religiosos a toda a sociedade, como nas questões do aborto e dos preservativos, tornou-se primordial. A retirada dos crucifixos das paredes também é uma declaração, no caso de liberdade.