Bellini Tavares de Lima Neto
Foi realmente uma pena eu não ter tido sensibilidade suficiente para conservar cópia de um texto que li há muitos anos. Foi durante uma aula de antropologia e a professora levou para a classe um texto muito bem elaborado e rico em conteúdo, que descrevia uma espécie de ritual primitivo. O autor ia narrando com detalhes expressivos cada uma das etapas de um tipo de cerimônia que causava impressão profunda e até um certo mal estar no leitor menos preparado. Tratava-se de alguma coisa ambientada nos princípios da raça humana, talvez no interior de uma caverna, pois a descrição da iluminação dava conta de que não acontecia à luz do dia. Ali dentro, um sujeito, se utilizando de instrumentos que pareciam lâminas feitas de pedras afiadas, praticava uma espécie de mutilação contra o próprio rosto. Começava se untando com uma espécie de lama que parecia ter atributos e poderes especiais e servia como preparação para o restante do ritual. Depois de se lambuzar com aquilo, o nosso ancestral passava os tais instrumentos cortantes pelo rosto. Embora fizesse aquilo com habilidade e requinte, não raramente o ritual provocava sangramentos e deixava cicatrizes. Quase que diariamente o homem se dedicava àquele cerimonial primitivo, observando com certo rigor a posição do sol para repeti-lo quase sempre no mesmo horário. É bem provável que, se dedicando sistematicamente a essa prática, o individuo se sentisse em dia com suas obrigações para com as forças da natureza ou da sociedade.
Alguém poderia, a esta altura, perguntar o que há de extraordinário na simples descrição de um ritual primitivo qualquer, sobretudo esse em que, rigorosamente, não há nada de tão inusitado. Afinal, imolações em honra aos deuses foram muito comuns ao longo da História e até hoje ainda há os cultos que exigem sacrifícios dessa ordem. Na verdade, o que dá ao texto em questão um caráter absolutamente notável e singular é o fato de que, ao final, o autor desvenda o mistério. Ele não estava descrevendo nada senão um rito diário praticado pela maioria dos indivíduos do sexo masculino: o ato de se barbear. Embora hoje muita gente já se utilize do barbeador elétrico, até recentemente o procedimento era exatamente o que o criativo autor descreveu: o creme de barbear, as lâminas, os cortes eventuais. O surpreendente é a forma pela qual um texto pode narrar um determinado fato ou situação levando o leitor a entender alguma coisa completamente diferente. Tudo é uma questão de habilidade do autor.
Que o diga o ainda presidente do Senado Federal comunicando, pesaroso, à nação que será obrigado a fechar a fundação criada no estado de sua preferência, o Estado do Maranhão. Em tom lastimoso ou, quem sabe, até lacrimoso, o citado parlamentar expressa toda a sua frustração e lamenta, pelo seu Estado e pelo país, o que ambos estão perdendo em matéria de preservação cultural. Um leitor desavisado poderá, sem qualquer culpa, se associar ao senhor em questão pensando em como é injusto este país que não apóia, financeira e culturalmente, uma iniciativa dessa grandeza. E, no entanto, tudo o que se tem registrado é que a tal fundação foi criada sob o pretexto de preservar a memória de seu próprio criador, o que já seria um acinte em matéria de auto-louvação. Mas, na realidade, esse é só um dos despropósitos. O maior deles, sem dúvida, é a movimentação espúria de dinheiro público que aconteceu e acontece por aquelas bandas, tudo amplamente divulgado pela imprensa. Diante da vinda à tona desses fatos, a torneira do poço artesiano público teve que ser fechada e a fundação acabou se afundando. Nada disso impede, contudo, que seu fundador, que também se dedica ao cultivo das letras, se esmere na produção de justificativas e esclarecimentos que lembram muito o texto do homem se barbeando. Aliás, o episódio da fundação é apenas um em sua extensa carreira. Todos os discursos proferidos durante o recente escândalo dos atos secretos, suas versões dos fatos, são verdadeiros primores desse exercício de travestir os fatos com roupagem que os disfarça completamente e tenta lhes emprestar outra fisionomia, uma verdadeira cirurgia plástica nos acontecimentos.
O texto que não me ocorreu conservar, assim como o nome de seu brilhante autor, era um exercício de inteligência humana. Quando, no entanto, esse recurso é utilizado para fins escusos, causa danos a uma significativa parcela da população, gera prejuízos às gerações presentes e futuras, o nome a ser dado é outro. Chama-se “desonestidade intelectual”, antes de tudo. E a designação cabe tanto a quem pratica quanto aos que apóiam o autor da prática. Não há fim que justifique esse meio, ainda que, também para justificar, se lance mão do mesmo expediente. Resta a esperança de que, como mostra a História, em algum momento os mistérios costumam ser desvendados. Aí se vai descobrir que pode ter acontecido o contrário do que narrou o autor do ritual curioso: o que parecia uma prática inocente e trivial era um ato danoso e de difícil reparação. O tempo para que isso aconteça e o custo da farsa dependerão de quem a ouve.
(Dr Bellini Tavares de Lima Neto - Advogado e morador em S.Bernardo do Campo/SPo)
Texto publicado na edição de hoje do O Estado do Tapajós