sábado, 24 de outubro de 2009

Hidra de Lerna

Hidras e vindas
Bellini Tavares de Lima Neto


“As muitas cabeças da mesma serpente” foi como batizei um modesto exercício de reflexão a respeito do que, a meu ver, é um dos mais danosos fenômenos que assolam o Brasil há longas décadas.
Trata-se da desonestidade intelectual, quem sabe a rainha-mãe de todas as atitudes de desprezo ou descaso para com os princípios de honestidade que deveriam balizar as condutas políticas, sociais, familiares. Inevitável, com um título assim, não me remeter à mitologia grega.
Existem muitas mitologias, mas talvez a mais popular e que mais povoe a mente do mundo ocidental seja a grega. Seus personagens são largamente conhecidos e reproduzidos até hoje na literatura, na música, no teatro, no cinema e outras formas de expressão cultural e social. Os deuses criados pelos gregos explicavam não só os fenômenos da natureza como quase todos, senão todos os sentimentos humanos, desde os mais nobres até os mais mesquinhos.
Basta olhar para qualquer uma dessas divindades assim como examinar um pouco de seus comportamentos e reações para constatar que eles eram capazes de amar, de trair, de criar intrigas, de vinganças e castigos, de procurar os próprios interesses mesmo que isso pudesse gerar prejuízos de toda espécie a quem quer que fosse.
Apenas para dar um tom de seqüência ao tal exercício de reflexão sobre a desonestidade intelectual e seus efeitos nefastos, a que me referi no começo, que figura poderia melhor expressar essa idéia além da Hidra de Lerna?
“A Hidra era uma serpente gigantesca e de muitas cabeças, que aterrorizava a região de Lerna, na Argólida. Filha de Equidna e Tífon, tinha por irmãos Cérbero, o cão do Hades; Ortro, o cão monstruoso de Gérion, e a Quimera. A picada da Hidra era extremamente venenosa, e contra o veneno não existia antídoto. Quando uma cabeça era cortada, outra nascia em seu lugar, e além disso uma delas era imortal.”
Aqueles que vêem e ouvem o que se passa tiveram a oportunidade de acompanhar o passeio federal ocorrido há poucos dias pela região do Rio São Francisco.
Além do atual mais alto mandatário da nação, lá estavam presentes uma de suas ministras, um político que parece propenso a concorrer às eleições de 2010 e mais um enorme séqüito de acompanhantes.
Toda essa corte se disse fiscalizando obras.
Mas, aproveitaram o ensejo para se vestir a caráter, ostentar vistosos chapéus de cangaceiro e proferir inflamados discursos cujo tema, coincidentemente, é sempre o mesmo: a polarização entre “nós” e “eles.
“Nós” são os do bem, os que vieram para sanar o diabólico malefício imposto ao povo por “eles”. Uma espécie de retorno do Messias, em caráter coletivo, desta vez para acabar com definitivamente com o reinado do mal.
Os discursos, auto-laudatórios como sempre, passaram por bravatas como “não vou permitir que o povo pobre continue passando sede e fome” ou “estou realizando o que eles não realizaram em 200 anos” e por aí afora. Em troca, a ovação, a consagração vinda de uma gente sofrida e humilde que compõe a paisagem já histórica.
Seria uma forma peculiar e “sui generis” de fiscalizar obras, uma verdadeira inovação na atividade? Qual nada.
Aí está, apenas e tão somente, uma das muitas cabeças da serpente se agitando freneticamente, estimulada pelas alquimias alucinógenas da desonestidade intelectual.
Qualquer um dos ali presentes e abancados nos palanques construídos para a ocasião sabe perfeitamente que nada daquilo corresponde à verdade.
Nenhum deles tem a mais remota dúvida de que aquela troupe estava ali fazendo campanha eleitoral fora do tempo e das regras.
Todos têm plena ciência e enxergam que essa polarização eleitoral é extremamente nociva para a construção de uma sociedade. Ninguém ali ignora que coisa alguma está, concretamente, sendo feita para que a fome e a sede desapareçam de uma vez por todas do cenário.
Ao contrário, sabe-se muito bem que elas estão apenas sendo precária, temporária e estrategicamente saciadas, pois se forem estancadas as torneiras dos favores escravizantes que se distribui entre aquela gente, tudo estará no mesmo patamar de sempre.
E nem poderia ser diferente, pois nada do que se alardeia estar acontecendo conseguiria resolver os problemas crônicos que se estabeleceram por aqui desde sempre.
Disso, nenhum deles tem qualquer dúvida, o que não impede que o palavrório demagógico e danoso se torne cada vez mais constante e freqüente.
Afinal, o propósito em jogo é o eleitoral, apenas ele.
Desonestidade intelectual, por exemplo, é tudo isso.
Uma das muitas cabeças da serpente, a nossa Hidra de Lerna que cada vez mais se mostra invencível e indestrutível. Argumente-se o quanto quiser. Ou, como parece ser mais ao gosto dos adeptos da troupe, ironize-se o quanto se desejar. Ou, ainda, grite-se, inflame-se o quanto se quiser.
Coloque-se em campo quantas tropas de choque, oficiais ou informais, se desejar. Pode-se até calar os que enxergam. Mas nada disso vai mudar o conteúdo dos fatos. Esse vai permanecer, incomodando os que não gostam dele.
Não se muda a natureza das coisas com discursos, falácias, campanhas publicitárias ou rompantes. Pode-se, sim, encerrar a discussão, proibir a reflexão, empastelar as oficinas interiores de quem não se rende à ao desvirtuamento da verdade.
Por mais prosaica que possa soar a frase, as coisas são como são. E tem um preço a se pagar, que sempre e inexoravelmente, é cobrado.
A História não deixa por menos, não dá desconto, nem moratória.
Que se continue alimentando e venerando a nossa Hidra de Lerna.
Isso tudo é apenas uma das muitas cabeças do monstro que habita estes trópicos há séculos, se alimentando de cada um de nós.
Mas a Hidra, um dia, também sucumbiu.


Dr Bellini Tavares de Lima Neto - Advogado morador em São Paulo
(Texto publicado na edição de ontem do jornal O Estado do Tapajós)

Nenhum comentário:

Postar um comentário