Eugênio Bucci (*)
De todas as mensagens de feliz ano-novo que inundam a televisão nestes dias de festas, a mais persistente é a que nos chega todas as noites ao fim dos capítulos da novela Viver a Vida (Rede Globo, 21 horas). Terminado o episódio, entra em cena o depoimento de alguém da vida real, com a sua própria história de vida. São pequenas histórias de superação, como ficou na moda dizer, que servem para corroborar o tema central da ficção.
Viver a Vida, escrita por Manoel Carlos, gira em torno do drama de Luciana (interpretada por Aline Moraes), cuja carreira de modelo profissional é interrompida por um acidente que a deixa tetraplégica. De um dia para o outro, ela passa a conviver com limitações físicas severas e precisa se reprogramar, ou, em outras palavras, precisa superar sua tragédia se quiser reencontrar o caminho da felicidade. A superação é o mote central da novela: é a ideia de superação que orienta o percurso de todos os personagens. Cada um a seu modo, eles tentam vencer seus limites. Para a namorada do médico o desafio é se curar do alcoolismo. Para a garçonete bonita que vive na casa do dono do restaurante o obstáculo é vencer os fantasmas do passado e as consequências dos erros que cometeu. Para outros a principal barreira é aceitar uma crueldade do destino caprichoso e encontrar um modo de seguir adiante.
Aí é que entram as pessoas reais que dão seus depoimentos ao final dos capítulos. Todas elas narram episódios traumáticos por que passaram e contam como, em meio a adversidades, tiveram de reinventar a vida. A mensagem é sempre a mesma: viver é superar e superar-se. Assim, por meio dos depoimentos, a realidade entra em cena para dizer que a ficção está certa.
O lastro de "vida real" reforça a identidade do público com a trama fictícia, com uma autoridade praticamente inquestionável. Às vezes, ele já vem embutido na própria obra. Em 1982, por exemplo, um autor estreante, Marcelo Rubens Paiva, comoveu o País com um best-seller que era, ele mesmo, um depoimento de vida real. Explicitamente autobiográfico, Feliz Ano Velho relatava, sem meias palavras, como o autor-protagonista reaprendeu a viver numa cadeira de rodas e venceu. Agora, na TV, o sofrimento da modelo Luciana é fictício, mas os "personagens reais", com suas falas na primeira pessoa, conferem à ficção o mesmo lastro de realidade. Aconteça o que acontecer, nós temos de acreditar que o novo ano será mais feliz que o ano velho. É disso que Luciana e todos aqueles depoimentos de final de capítulo nos tentam convencer.
O diálogo entre ficção e realidade vem-se aperfeiçoando velozmente na indústria do entretenimento, com resultados cada vez mais potentes. O mesmo recurso - inserir falas de gente como a gente no fecho de cada episódio - já foi testado pelo próprio Manoel Carlos numa novela anterior, Páginas da Vida, de 2006. Agora, porém, o procedimento mostra-se mais certeiro. A sintonia entre as falas das personagens fictícias e o discurso das pessoas reais é tão bem calibrada que parece que a realidade começou a falar a língua da ficção.
A tal ponto que cabe perguntar: é a realidade que inspira a ficção ou a ficção que ordena a realidade?
À primeira vista, fica no telespectador a impressão de que a novela apenas toma por base as tragédias anônimas para transformá-las numa peça ficcional de grande força. No entanto, à medida que se vão sucedendo os depoimentos, noite após noite, outra percepção ganha corpo: a de que os relatos das diversas pessoas reais parecem reeditar um texto mais ou menos igual. Aquelas pessoas nunca conversaram entre si, mas, é estranho, elas falam o mesmo texto: a minha vida transcorria normalmente, veio uma fatalidade, eu não me entreguei, lutei, e hoje sou mais feliz do que antes.
De onde vem esse texto único? Já sabemos que todos os melodramas se parecem: moça pobre, príncipe encantado, vilões, o bem contra o mal, o paraíso do amor eterno, etc.
Sabemos também que a saga do herói dá a estrutura narrativa, com poucas adaptações, das novelas de TV e dos filmes de Hollywood. Mas agora estamos vendo algo de sutilmente novo: gente de carne e osso que, ao falar de sua trajetória individual, reproduz a narrativa do melodrama. Isso não invalida a verdade que esses relatos nos transmitem, nem reduz o seu valor, ou sua autenticidade, mas deveria fazer-nos pensar.
Será que, sem as categorias narrativas do entretenimento, nós teríamos os recursos linguísticos para descrever as nossas próprias subjetividades? Será que, sem buscar as imagens da ficção, seríamos capazes de dizer quem somos, ou como nos vemos? É bem provável que não. E antes que alguém se apresse a dizer que desde sempre o humano se apoia nos mitos para se compreender e para se comunicar, é preciso lembrar que, na nossa era, os mitos não vêm mais da religião ou da literatura, nem mesmo da arte propriamente dita, mas da indústria que promove a diversão. A novela, assim como retrata o nosso tempo, sintetiza a linguagem pela qual aprendemos a dizer quem somos. Não estamos mais na era da chamada indústria cultural: estamos na era em que cada sujeito anônimo, ao falar de si, fala as narrativas da indústria cultural, que, por sua vez, vai se abastecer exatamente dessas muitas falas. E a isso muitos vêm chamando, inadvertidamente, profusão de individualidades. Ora, como falar em profusão de individualidades se as individualidades se copiam umas às outras em escala industrial?
Fora tudo isso, que o novo ano seja melhor que o ano velho. E que sejamos felizes, mesmo sabendo que, na vida real, ser feliz nada mais é que a ilusão de nos darmos bem no melodrama que, precariamente, inventamos para nós mesmos.
(*) Jornalista, é professor da ECA-USP