domingo, 27 de dezembro de 2009

A política e o homem público


Gaudêncio Torquato(*)
2009 chega ao fim deixando a impressão de que a política, aqui e alhures, não passou no teste para aferir sua qualidade. A frustração generalizada com os pífios resultados da conferência de Copenhague aponta para o fracasso da missão de mandatários importantes, a partir de Barack Obama, em que se depositavam as maiores esperanças da coletividade mundial. Espraia-se por todos os continentes o sentimento de que a política, além de não corresponder aos anseios das sociedades, não é representada pelos melhores cidadãos, como estatuía o ideário aristotélico.

A estampa dos homens públicos também se apresenta esboroada. Basta olhar para o nariz e os dentes quebrados do premier italiano, Silvio Berlusconi, pelo impacto de uma pequena réplica do Domo de Milão, jogada por um manifestante de rua. Aquela imagem reflete o sexto compromisso não cumprido pela democracia, que trata da educação para a cidadania, e que foi objeto de análise de um dos mais proeminentes pensadores da ciência política, o também italiano Norberto Bobbio, em seu vigoroso ensaio sobre o ideário democrático.
Governantes das mais diferentes ideologias dão efetiva contribuição à degenerescência da arte de governar, pela qual Saint Just, um dos jacobinos da Revolução Francesa, já expressava, nos meados do século 18, grande desilusão: "Todas as artes produziram maravilhas, menos a arte de governar, que só produziu monstros." A frase se destinava a enquadrar perfis sanguinolentos. Mas, na atualidade, a canalhice e a mediocridade também frequentam espaços públicos. Quando Bill Clinton foi flagrado em atitudes não muito litúrgicas nos salões da Casa Branca, o panteão da esculhambação se elevou às alturas. Da mesma forma, ao admitir ter recebido doações do caixa 2, o ex-presidente Helmut Kohl cindiu o escudo da ética alemã.

O que explica a propensão de homens públicos a assumirem o papel de atores de peças vis, cerimônias vergonhosas e, ainda, abusarem de linguagem chula, incongruente com a posição que ocupam? O que explica a imagem de um governador recebendo pacotes de dinheiro ou a de um presidente de Assembleia escondendo propina na cueca? A resposta pode ser esta: a despolitização e a desideologização, que se expandem na sociedade pós-industrial. Os mecanismos tradicionais da democracia liberal estão degradados. Outra resposta aponta para o paradigma do "puro caos", que o professor Samuel Huntington identifica como fenômeno contemporâneo e que se ancora na quebra no mundo inteiro da lei e da ordem, nas ondas de criminalidade, no declínio da confiança na política e na solidariedade social.

No caso da política, esse declínio é acentuado. Ela deixou o espaço missionário para entrar no mercado das profissões. Por que os mecanismos clássicos da política vivem crise descomunal? As nações democráticas registram, neste princípio de século, forte declínio da participação dos cidadãos no exercício da vida pública. Basta apurar o retraimento dos eleitores por ocasião dos pleitos. O profundo desinteresse das populações pela política se explica pelos baixos níveis de escolaridade e ignorância sobre o papel das instituições, e pelo desinteresse dos políticos em relação às causas sociais. Este fenômeno - a distância entre a esfera pública e a vida privada - se expande de maneira geométrica.

Na Grécia antiga, a existência do cidadão se escudava na esfera pública. Esta era sua segunda natureza. A pólis constituía o espaço contra a futilidade da vida individual, o território da segurança e da permanência. Até o final da Idade Média, a esfera pública se imbricava com a esfera privada. Nesse momento, os produtores de mercadorias (os capitalistas) invadiram o espaço público. Aí começa o ciclo da decadência. Que, na primeira década do século 20, se acentuou com o declínio moral da classe governante. Assim, o conceito aristotélico de política - a serviço do bem comum - passou a abrigar o desentendimento. E a ambição.

Com a transformação dos estamentos, as corporações profissionais se multiplicaram. Campos privados articularam com o poder público leis gerais para as mercadorias e as atividades sociais. Sensível mudança se processa. Agora, a esfera pública vira arena de interesses. Disputas abertas e intestinas são deflagradas, na esteira de discussões violentas. Bifurca-se o caminho da res publica com a vereda do negócio privado. O diagnóstico é de Hannah Arendt: "A sociedade burguesa, baseada na competição, no consumismo, gerou apatia e hostilidade em relação à vida pública, não somente entre os excluídos, mas também entre elementos da própria burguesia." Em suma, a atividade econômica passou a exercer supremacia sobre a vida pública. Os eleitores se distanciaram de partidos, juntando-se em núcleos ligados ao trabalho e à vida corporativa - sindicatos, associações, movimentos. Eis a nova face da política.

Se há participação dos aglomerados sociais, ela ocorre dentro das organizações intermediárias. O discurso institucional, levado a efeito por atores individuais e partidos, não faz eco. Mas a estética da política pontua e remanesce nos sistemas cognitivos, emoldurando a policromia e o polimorfismo do modus operandi dos atores em seus palcos: parlamentares se atracando em plenários, dentes quebrados, sangue jorrando pelo nariz, encontros mafiosos, orações de propina, dólares na cueca, descrições de cenas de sexo, ovos podres atirados em autoridades, etc.

O que fazer para limpar a sujeira que borra a imagem do homem público? Não adianta colocar sobre ela camadas de tinta. Equivaleria a pintar uma parede sem argamassa, oca. A pintura deve ser feita por dentro. A reengenharia voltada para o resgate da moral na vida pública é tarefa para mais de uma geração. Mas pode ser iniciada já. Primeiro passo: o homem público deve cumprir rigorosamente o papel que lhe cabe. Segundo: punir os que saem da linha. Terceiro: revogam-se as disposições em contrário.

(*) Professor titular da USP, jornalista, é consultor político e de comunicação

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