terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Mas, e o último?


Bellini Tavares de Lima Neto (*)
“O maior espetáculo aos olhos do homem, ainda é o próprio homem”. Essa frase eu ouvi muita vezes, repetida por um tio, desses muito especiais que algumas pessoas têm a felicidade de ter na vida. Eu fui uma delas. Nunca consegui saber se ele foi o autor da frase ou ouviu de alguém. Ainda recentemente tentei pesquisar a origem da frase, mas não consegui encontrar nenhuma referência a ela. Se a autoria não pertencer ao tio que já não se encontra por aqui, fica registrado o meu respeito pelo criador e a devida vênia por reproduzi-la. Se, no entanto, o autor da frase tiver sido meu tio querido, tudo fica ainda mais sintomático e ilustrativo. E isso porque se houve neste planeta alguém mais desprendido que ele, ainda não tive a sorte de encontrar. Aquele foi à materialização de uma antiga expressão popular que diz que o que faz a mão direita, a esquerda não precisa saber. Dificilmente alguém já tenha levado tão a sério a honrosa tarefa de desempenhar o papel de ser humano. E, talvez por que tenha sido esse tipo de gente, também tenha tido a sensibilidade para criar ou tão bem propagar uma verdade como essa: “o maior espetáculo aos olhos do homem ainda é o próprio homem”.

Embora a natureza seja exuberante e exerça um fascínio indiscutível, o ser humano se sente arrebatado mesmo quando se depara com a obra do próprio ser humano. Por menos sensível que possa ter se tornado, o homem ainda se enternece com a música, ainda se emociona com a representação dramática, se extasia com as artes plásticas, se desprende do próprio corpo com a magia da poesia e da prosa. O homem se encanta com as obras da ciência, da tecnologia, com os impressionantes avanços de tudo isso e se enche de orgulho. É como se estivesse diante de uma enorme população de extraterrestres, gente de todos os planetas, de todas as galáxias, de todos os universos, dizendo: “estão vendo o que a gente faz por aqui?” E nesse “a gente” estamos todos, como se tivéssemos composto cada nota da sinfonia, tocado cada instrumento, como se ainda estivéssemos com as mãos sujas das tintas utilizadas no quadro. Como se as luzes dos refletores do grande teatro ainda estivessem acessas e ainda se ouvisse os aplausos de um público entusiasmado. Como se estivéssemos chegando da noite de autógrafos do livro de poesias ou do romance fadado a se tornar eterno. A vitória de cada um é a vitória de todos, de toda a espécie.

Mas, não são somente as obras grandiosas do homem que formam o grande espetáculo aos olhos do próprio homem. Afinal, o cotidiano, esse saltimbanco que vai puxando a grande fila em que todos nós estamos não anda em trajes de gala. Sua roupa é simples, “roupa de briga”, como se dizia antigamente, coisa própria para o dia nosso de cada dia. Dessas pérolas do dia a dia é que se compõe a maior parte da vida e, ainda, assim, o homem consegue fascinar o homem. E exercitar uma das maiores virtudes de que a natureza dotou os seres em geral, humanos ou não: a solidariedade. Esse é um dos espetáculos do homem que mais cativa o próprio homem. Sobretudo quando ela, a solidariedade, se mostra em sua versão mais pura e original: na forma descontraída, espontânea de se expressar. Aí, o homem é grandioso como a mais grandiosa de suas obras.

Estamos um grupo de pessoas, na ante-sala da Unidade de Terapia Intensiva de um hospital de São Paulo. No cômodo posterior, a sala propriamente dita, travam-se renhidas batalhas entre a vida e o mistério do depois da vida. As pessoas, visitantes de seus parentes, os protagonistas daqueles combates, se respeitam entre si, cada uma entendendo o drama alheio, uma cumplicidade tácita. Na parede, uma pia pequena para que se lave as mãos. A torneira é daquelas que precisa de uma pequena pressão na parte superior para que a água seja liberada. E o jorro dura um pequeno espaço de tempo. Quando as duas mãos estão sob a água, a torneira se fecha, dificultando a conclusão do processo. E o que, automática e espontaneamente, fazem as pessoas ali? Enquanto um esfrega as mãos, um outro mantém a torneira pressionada e a água jorrando. Ninguém pediu ou ensaiou. Tudo de improviso. 
O resultado é que todos conseguem lavar as mãos tanto no começo quanto no fim da visita. E enquanto estamos ali, silenciosos naquele ato comunitário, alguém, no meio do processo, faz um comentário despretensioso, mas que parece bem oportuno: “mas, como é que vai ser para o último a lavar as mãos? Eu já ia acrescentar que, naquele caso, não ia valer o principio bíblico de que “os últimos serão os primeiros”. Mas, antes de mim, uma mulher simples que ali estava disse apenas: “ora, basta que o penúltimo espere pelo último”. 
E eu me calei, olhando aquela mulher simples e lembrando do meu tio: “o maior espetáculo aos olhos do homem ainda é o próprio homem”. 
 
(*) Advogado e morador em São Bernardo do Campo em São Paulo. Escreve para o site
O Dia Nosso De Cada Dia - http://blcon.wordpress.com/

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