segunda-feira, 28 de junho de 2010

De Porsche na Disneylândia

Sócrates (*)

Tanta coisa emperra a possibilidade de vermos nossos atletas vestidos de cidadania, o que é, no mínimo, uma excrescência em um país que sonha um dia se tornar grande e comparável aos mais desenvolvidos. Todos sabemos, e mais do que nunca temos ouvido, que a educação é a única base para encontrar o bom caminho que nos levará ao desenvolvimento sustentável e à excelência. Como então entender que determinadas áreas sem o devido valor sejam tratadas como exceções, em face da questão educacional?
A primeira tentativa de regulamentar a atividade esportiva no Brasil ocorreu em 1976.

No texto constitucional, existia então um artigo segundo o qual nenhum atleta poderia celebrar um contrato profissional sem comprovante de alfabetização, além de outras questões menos relevantes, como atestado de sanidade física e mental. Esse artigo foi revogado, porém, no texto da Lei Pelé, em 1998. É inacreditável que em um país com a pretensão de erradicar o analfabetismo e educar toda a sua população haja estímulos à evasão escolar decorrentes do desprezo pela educação. E continuamos a discutir transferências para o exterior como se fosse a questão principal...
Um bom exemplo são as recentes declarações de uma das nossas grandes revelações. Elas soaram com estupefação, mas não surpresa. Representam a fina flor daquilo que estamos fazendo com a nossa juventude, antigamente transviada, rebelde e lutadora. Juventude que muitas vezes decidiu ir às ruas para defender seus direitos, constranger políticos, reclamar por democracia e expulsar presidentes, mas que nunca foi tão extraordinariamente abandonada e agredida.

Nada contra o sonho de possuir uma Ferrari ou um Porsche (quem sabe os dois), uma mulher linda e não inteligente; andar depilado; preferir ir à Disney que ao Musée d’Orsay ou ao Louvre; jogar sinuca; não ter título de eleitor, não saber quem são os candidatos a presidente ou, quem sabe, nem mesmo quem é o atual presidente. O que dói mesmo é esta ser a realidade de boa parcela da população brasileira – mesmo aquela sem ter o que o comer sonha com isso. Ou aquela sem um único dente na boca, ela também sonha com isso. Assim como a que mora debaixo dos viadutos, faz suas necessidades na rua, jamais toma banho ou nem sabe o que é higiene pessoal. Ou a que se prostitui, rouba e mata para manter seus vícios, principalmente o crack – eles também sonham com isso.
Dizem que nosso país tem futuro. A nossa nação, pelo visto, não trilhará, porém, o mesmo caminho. E eu pergunto que diabos estamos fazendo com a nossa juventude? Temos pela frente uma Olimpíada e uma Copa do Mundo. Por que não aproveitar e tratar o esporte como ferramenta de educação, socialização e promoção da saúde, que são grandes problemas nacionais.

Ao observar os olhares de todos os que assistem ao acender e apagar de uma chama olímpica, perceberemos muito de esperança.
Esperança que jamais será concretizada na vitória de um ou outro atleta, até porque quase ninguém dos que estão em torno de um evento como esse se preocupa com indivíduos ou bandeiras, e, sim, com a humanidade.
Concreto é o sonho coletivo de melhora das condições de vida de todos que habitam o planeta. Diferentemente da lógica atual que a todos impõe uma postura individualista, em que se vê exclusivamente o próprio umbigo, abandonando tanto a solidariedade quanto o sacrifício de lutar por uma sociedade mais justa e racional.

Nos jogos lutamos contra nossas limitações e não contra nossos semelhantes.
Quando assistimos um maratonista exausto lutar até o limite de suas forças para chegar ao final de prova mesmo que em último lugar, nos damos conta de que os valores humanos não morreram. Estão desvalorizados, é certo, porém nem por isso devem ser desprezados. Quando um ginasta erra por pouco e cai, deixando escapar lágrimas de frustração, ele nos dá mostras de que devemos acreditar até o fim, ainda que sejamos frágeis demais para enfrentar alguns obstáculos. A Olimpíada e a Copa do Mundo, nos dias de hoje, são um dos raros momentos em que podemos crer que o ser humano pode ser melhor do que aquilo que demonstra. E é com esse espírito que devemos tratá-los e aproveitar seus exemplos.

Serão oportunidades especiais capazes de gerar muita coisa positiva para o cidadão brasileiro. A realização dos dois eventos terá, necessariamente, de servir como referencial para o futuro do desporto no País. Há possibilidade de que possam permitir um estímulo dos mais importantes para o desenvolvimento dessa área tão importante com aumento e qualificação dos praticantes – o que também pagaria uma parte da dívida social.
Poderá também, desde que os investimentos realmente sejam voltados para tal, melhorar e muito a qualidade de vida nas cidades que os receberão. Como no Rio de Janeiro, com a despoluição de seus mananciais e da Baía de Guanabara, aumento substancial nas linhas do metrô e de outros transportes públicos, aumento dos leitos de sua hotelaria, maior exposição turística para o mundo menos informado a respeito do Brasil.

Se a organização e o planejamento conseguirem produzir uma infraestrutura adequada à importância dos eventos, teremos grandes possibilidades de dar um salto de qualidade na nossa competência esportiva. É disso que precisamos e é isso que queremos. Temos de ter em mente que a imagem do País estará em jogo e não sei até onde estão levando a sério essas questões para que consigamos contemplar todas as expectativas.
Temos de esperar para ver, torcer e acompanhar de perto para que tudo dê certo.
Pelo bem do nosso esporte e pela imagem e futuro da nação brasileira.

Entretanto, tememos pela má gestão dos recursos a ser alocados para preparar os dois eventos. Temos todas as evidências para respaldar as nossas preocupações. Basta para tanto recordar o que foi e o que não foi feito, quando da realização do Pan-Americano em 2007 pelos mesmos dirigentes.
Será que, agora, eles farão coisa melhor?
Talvez, mas é difícil acreditar.

(*) Médico e ex-jogador da Seleção Brasileira

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