Humberto Peron (*)
Diariamente acompanhamos jogadores reclamando da situação dos clubes em que estão. As razões para o descontentamento são as mais variadas possíveis. Elas passam por falta de oportunidade no time, mau relacionamento com os companheiros e treinador, falta de identificação e brigas com a torcida ou uma proposta irrecusável de um time obscuro da Europa ou do Oriente Médio.
Bem, poderíamos gastar horas listando o que os atletas inventam de desculpas para abandonar um clube e procurar outro lugar para jogar. Está certo que os clubes, em muitas oportunidades, não cumprem o prometido com os atletas, mas eu acho que os profissionais são muito mal orientados em alguns casos.
Muitos não o devido valor à situação privilegiada de poder estar num clube grande, com estrutura, e acabam se enfiando em tremendas barcas furadas. Por essa precipitação acabam tendo suas carreiras seriamente prejudicadas e abreviadas.
Aqui, passo para vocês um depoimento de um jogador que poderia ter tido um futuro brilhante, mas por ter cometido vários erros nas suas transferências, hoje vive com dificuldades. Nas partidas de veteranos de que participa, ouve sempre a pergunta fatal que mina a autoestima de qualquer ex-jogador: "Quem é você mesmo?"
"Eu fui muito burro. Joguei tudo fora na minha vida. Tive a chance de passar por um funil que poucos conseguem. Cheguei a um time grande de São Paulo e não soube o que fazer. Não dei valor ao que eu tinha conseguido e nem ao meu talento.
Olha aqui, veja quantos ex-jogadores. Eu sei que muitos foram bem piores do que eu. Cara que fica dando autógrafo aí, tido como símbolo do clube, era meu reserva. Tem um monte de gente aí que nem era relacionada quando eu era juvenil. Agora, eles estão bem. Foram espertos.
Uma pena que só hoje eu percebo a potência de um clube como esse. No meu tempo, a gente não tinha a estrutura que os jogadores têm, com campos de treino, tratamento médico de primeira, mas o que o clube oferecia era bom demais.
Cara, eu saí desse time grande por besteira. Eu tinha estourado de idade, sempre me concentrava com os profissionais. Aos poucos, fui conquistando um lugar no banco e com o tempo comecei entrando nas partidas. O engraçado é que eu aguentava tranquilo todo o período que esperava ficar entre os reservas.
Mas, quando eu comecei a entrar nas partidas, aí fiquei impaciente. Quando você joga num time grande, vem logo a fama. Você tem o seu lado vaidoso, quer aparecer cada vez mais. Eu queria estar na TV para mostrar para os meus amigos da vila. Também, naquele tempo, quando você entrava no jogo e o time ganhava, o bicho vinha. Me lembro que só com os meus três primeiros bichos eu consegui comprar um carro.
Então, eu comecei a forçar a barra para ser titular. Por mais que os diretores, o treinador e os veteranos do time tentassem me explicar que eu era novo, eu nem queria saber. Por isso, fui fazendo uma besteira atrás da outra. Logo, descobri que poderia ganhar um bom dinheiro jogando em uns jogos de várzea. Eu, muito bobo, inventava uma contusão para ficar de fora de um jogo de profissionais para jogar em alguma quebrada.
Também me faltou alguém que me orientasse. Hoje, qualquer garoto de 12, 13 anos tem procurador. Eu não tinha nada disso. Eu, otário, cai no papo de um diretor de um time de nome do Rio de Janeiro e comecei a forçar minha saída daqui. Como naquele tempo tinha o passe, comecei a aprontar mesmo para que o time me liberasse, com o preço baixo.
Eu comecei a chegar atrasado aos treinos, brigar em treinamentos, tudo para forçar a minha saída. Em nenhum momento pensei no clube e, o que é bem pior, em mim. Eu não percebia --e nem sabia-- que estava acabando com as minhas chances em um dos grandes clubes daqui.
Consegui meu objetivo. O clube me vendeu e fui para o Rio de Janeiro, com um salário quase dez vezes que eu ganhava em São Paulo. Eu estava acostumado com o ritmo daqui e quando eu cheguei lá as diferenças eram tremendas. O ritmo de treinamento era outro, as condições do departamento médico eram ruins.
Para complicar ainda mais eu cheguei num time que tinha um monte de craques e grupo de jogadores que controlava quem jogava ou não. Não tinha jeito: quem não entrasse na patota desses caras, dançava. Eu sem experiência tentei enfrentar a "panela" e me dei mal.
Não jogar tudo bem. Mas a coisa complicou quando chegou o dia do primeiro pagamento. A grana não caiu. Fui falar com o diretor que me contratou, e ele me pediu dez dias de prazo. Que viraram trinta dias, dois meses e foi indo. No terceiro mês, fui cobrar de novo. Ouvi que o clube não me pagaria porque eu não jogava. Aí eu descobri que nem o meu passe eles tinham me acertado.
Tentei voltar ao meu time de origem, mas eles não me aceitariam por tudo que eu tinha feito para forçar minha saída. A única coisa que eles fariam era me dar o passe. Fiquei com os meus direitos, mas como era o mês de agosto, eu só teria condições de jogar em outro time no próximo ano.
Procurei vários times no período e não conseguia nenhum time para jogar. Caí numa lista negra, já que tinha criado problemas em dois times grandes. Só achei lugar num time do interior de Goiás.
Com todo respeito, aí foi o meu fim.
O clube não tinha nem bola para treinamento. Os jogadores cuidavam do próprio material e tudo que o clube dava de alimentação era um café com um pão com manteiga amanhecido. Na concentração, eu dormia no chão num lugar que só tinha mosquitos. Ainda era sacaneado pelos meus companheiros que diziam que eu tinha que resolver as partidas, pois ganhava mais e tinha jogado em grandes centros.
Em um ano, tinha saído do céu para o inferno. E infelizmente ainda estou nele. Já faz 20 anos."
Depois da última frase não falou mais nada. Nem precisava.
No futebol, como na vida, é preciso dar valor ao que se tem e nunca, por precipitação, trocar seis por nada. Em muitas oportunidades não há como reparar o erro.
Até a proxima.
(*) Humberto Luiz Peron, 41 anos, é jornalista esportivo
Acompanhe mais pitacos em twitter.com/humbertoperon
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