Sérgio Malbergier (*)
Meu bisavô, inquieto com o antissemitismo e a pobreza, deixou sua pequena cidade do sul da Polônia rumo à América no início do século passado. Como muitos outros patrícios, arrumou um emprego em Nova York, numa fábrica de roupas.
Judeu religioso, porém, não aceitou trabalhar aos sábados, dia de descanso do judaísmo, e voltou para a Polônia.
"Voltou pra Hitler matar", repetia sempre minha avó Pessel (Paulina), no jardim da casa de Niterói, onde contava e recontava essa história dezenas de vezes numa tristeza sem fim.
Meu bisavô é o barbudo da foto nesta página, minha avó, a menor das duas meninas de pé. Tirando as duas, a irmã no colo e o filho, que tiveram a sorte de fugir da Europa antes da barbárie nazista, os outros retratados foram mortos nos campos de extermínio alemães durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45).
Dói imaginar o que minha avó (se estivesse viva) sentiria se visse o país que lhe deu abrigo e onde criou com a alegria que lhe restou filhos, netos e bisnetos estender o tapete vermelho ao ditador iraniano Mahmoud Ahmadinejad, pária internacional que nega e promove a negação do Holocausto (o extermínio de 6 milhões de judeus indefesos pela Alemanha nazista), uma negação da própria história da humanidade e, numa escala próxima, da minha avó e de seu imenso sofrimento.
Dela, meu, de dezenas de milhares de brasileiros judeus e de milhões de brasileiros de outras religiões que se compadecem com as atrocidades nazistas e também com as atrocidades da teocracia islâmica iraniana contra seus próprios cidadãos.
O presidente Lula e sua diplomacia são no mínimo ingênuos ao argumentar que a visita de Ahmadinejad elevará a projeção da diplomacia brasileira.
O pária de Teerã é barrado nas capitais ocidentais onde se pratica política externa responsável dada a sua extensa ficha criminal: tortura e morte de centenas de opositores do regime; vencedor de eleições contestadas (provavelmente roubadas), cujos protestos oposicionistas, reprimidos a balas, Lula chamou irresponsavelmente de briga de torcidas; promoção do terrorismo internacional; opressão sangrenta a minorias religiosas; perseguição de homossexuais (executados em praça pública) e de partidos políticos, especialmente os de esquerda.
Mas o governo Lula, mal aconselhado pela banda cada vez mais aloprada que comanda sua política externa, argumenta que dar honras de Estado e palanque a esse opressor, apoiador de terroristas e negador do mal absoluto promovido pelos nazistas, pode fazer com que Ahmadinejad modere sua posição.
Primeiro, os aloprados externos de Lula mentiram ao dizer que Washington apoiava sua intermediação com o Irã para tentar fazer com que o país abandone seu programa nuclear clandestino e ilegal.
Os EUA, na verdade, e as outras potências ocidentais legitimamente preocupadas com a perspectiva de o beligerante regime iraniano (que ameaça destruir Israel e busca os meios, nucleares, para esse novo Holocausto) obter a bomba atômica, consideram a visita apenas uma ação legitimadora do regime iraniano.
E o apelo de Lula para que o mundo negocie com o Irã na verdade já está sendo praticado desde que Obama assumiu a Casa Branca. As negociações, conduzidas com EUA, China, Reino Unido, Rússia, França e Alemanha, não vão a lugar nenhum justamente porque Teerã quer a bomba atômica, e só Lula e o Itamaraty fingem não perceber.
No Ocidente, Ahmadinejad só é recebido pelo neocaudilho Hugo Chávez e seus regimes satélites. Barrado alhures, busca alianças na América do Sul e onde o recebam.
O que Ahmadinejad tem a ganhar com a visita ao Brasil está claro para todos:
1) Legitimidade de uma potência emergente que ainda não sabe direito o que fazer desse novo poder internacional conquistado, sobretudo, por sua economia pujante e também pela liderança e o carisma do próprio Lula.
2) Um palanque precioso para discorrer livre e cinicamente sobre suas intenções "pacíficas" e "humanitárias", que na verdade são exatamente o contrário. E ainda bater em aliados históricos do Brasil, como os EUA.
Já o Brasil só tem a perder na formação de sua imagem global de país tolerante, defensor dos direitos humanos e da democracia.
Minha avó hoje não é só uma fotografia amarelada como a que acompanha este texto.
É uma parte grande em mim, que chora de tristeza ao ver o país que a abrigou e me pariu estender o tapete vermelho a um ditador que nega o maior sofrimento da vida dela e de milhões de pessoas e a maior iniquidade cometida pela humanidade.
Lula manchou o Brasil ao receber Ahmadinejad e me deixa com vergonha de ser brasileiro.
E ainda tem o pior
E se já não bastasse o apoio deslavado ao iraniano, o governo brasileiro ainda viu necessidade de retaliar a liderança judaica brasileira que, corajosamente, protestou em público contra a visita do déspota, deixando de convidá-la a almoço com o presidente de Israel, Shimon Peres, durante sua recente visita ao Brasil.
Para o governo Lula e seus assessores, a comunidade judaica deveria ficar calada enquanto se tripudia sobre sua memória. O que não é nada democrático.
Editor do caderno Dinheiro da Folha de S. Paulo.
Foi editor do caderno Mundo (2000-2004), correspondente em Londres (1994) e enviado especial a países como Iraque, Israel e Venezuela, entre outros.
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