domingo, 29 de novembro de 2009

A arrogância como ameaça


Gaudêncio Torquato (*)

"Cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém." No momento em que a mídia internacional começa a ensaiar um hino de exaltação ao Brasil, chegando a usar expressões que até hoje são objeto de polêmica entre analistas dos nossos ciclos econômicos, o ditado popular mineiro pode ser um bom aviso a quem acredita que ficamos imunes às tempestades.
A revista alemã Der Spiegel atribui ao "pai dos pobres" um novo "milagre econômico" e a inglesa The Economist exibe na primeira página o Cristo Redentor impulsionado por um foguete. Se as duas publicações sinalizam a entrada do País no palco mais elevado das nações, destacando que o presidente Luiz Inácio, guindado ao papel de astro-rei, prevê que nossa economia será uma das cinco maiores do planeta em 2016, não lhes escaparam sinais amarelos que sugerem cuidado - e muito cuidado - na travessia da rota.

O primeiro alerta é sobre os gargalos na área da infraestrutura, a qual, como se sabe, acanhada, abriga equipamentos obsoletos e espaços inadequados; o outro faz inflexão no campo das atitudes, apontando a soberba como um entrave ao desenvolvimento.
Se as informações e os dados expostos, a partir de potenciais econômicos e solidez do sistema democrático, formam o denso painel sob o qual se lê a projeção de que o Brasil poderá ultrapassar a Grã-Bretanha e a França até antes de 2014, chama a atenção na abordagem da revista inglesa a inferência de que "talvez a maior ameaça ao Brasil seja a arrogância". É curioso verificar que algo pinçado da esfera da abstração, e profundamente imbricado em nossa cultura, assume a posição de "maior ameaça". Significa que aos atentos olhos internacionais não escapam os traços do nosso ethos: a euforia, a improvisação, a emoção, a informalidade, o verbalismo oco, as promessas não cumpridas, a protelação e, claro, a soberba. Se este valor, de conotação negativa, passou a frequentar a agenda crítica da mídia internacional, é porque certamente tem sido intensificado.
Daí as perguntas: como poderá travar o crescimento? O que leva um governante a ultrapassar limites e assumir atitudes arrogantes?

Tentemos uma explicação.
Em princípio, tal condição se dá quando o mandatário atinge grau tão elevado de autossuficiência que se imagina superior aos pares.
Essa carga psicológica geralmente toma corpo sob o empuxo de amplo apoio popular. Embalado pelos aplausos da massa, o figurante torna-se impermeável à crítica e refratário a qualquer ponto de vista que possa borrar o diáfano manto da imagem pública. Impregna-se de uma dualidade humano-divina, de acordo com a ótica descrita pelo sociólogo francês Edgar Morin em sua obra.

Para ele, celebridades que frequentam o Olimpo da cultura de massas - artistas de cinema, cantores, mandatários, reis, rainhas, etc. - têm um parentesco com as divindades.
Vivem cercados de áulicos. Deles se podem esperar frases como esta, pronunciada, em tempos idos, pelo onipotente Aristóteles Onassis, ex-marido de Jacqueline Kennedy: "Somente Deus e eu somos capazes de fazer algo a partir do nada."
Baixemos, agora, no nosso terreiro tupiniquim em pleno verão de 2009.

Eis à nossa frente Lula, o Filho do Brasil, com uma história que será vista por milhões de brasileiros nos próximos meses. O território será inundado por cascatas de lágrimas. Com a maior popularidade dos ciclos presidenciais, comparando-se aos idolatrados Kubitschek e Vargas, Luiz Inácio, de tão convencido de que habita o Olimpo, já não se impõe limites. Dá lições aqui, puxa a orelha de outro acolá. Diz a um estupefato George W. Bush: "O problema é o seguinte, meu filho, nós ficamos 26 anos sem crescer, agora você vai atrapalhar? Resolve tua crise."
Inebriado pela fama, sugere ser uma extensão de Cristo quando compara o Bolsa-Família ao milagre da multiplicação dos pães. Mais uma lição: "Se os americanos quiserem, podemos mandar tecnologia para eles salvarem os bancos."
Se o Brasil enfrentou com galhardia os dissabores da crise, pode ditar ao mundo seu modelo de capitalismo. Claro, com o braço mais forte do Estado na condução da economia.
E que ninguém nos venha dar lições.

Dessa forma, a arrogância desenrola o seu véu sobre o vasto domínio estatal.
A ameaça apontada pela The Economist dirige-se também à ministra Dilma Rousseff, temida pelas atitudes enérgicas na cobrança aos auxiliares. Aliás, esse é o seu calcanhar de aquiles. O que salta à vista na administração federal é certa autossuficiência. Só o governo está certo. Com sua fala direta e sem medidas, Lula parece infalível. Mesmo que a peroração não resista à lógica.
O amanhã vira hoje. Não por acaso, os bilhões de barris de óleo do pré-sal são puxados do futuro para irrigar, já, os cofres da União, de Estados e municípios.
A farra da arrogância faz seu carnaval fora de época.

O ufanismo do Brasil-potência chega a lembrar refrãos cantados no passado.
A banda toca de maneira ininterrupta Lula Lá. Mas, e a infraestrutura? Onde estão os portos reequipados? Há estrutura para recepção dos grandes navios que descobrem o Brasil como potência turística? E os investimentos estratégicos para garantir o desenvolvimento autossustentável? São enrolados no tapete da linguagem tatibitate.
Na outra ponta, os gastos do governo sobem às alturas.
As estruturas tornam-se paquidérmicas.

Enquanto isso, três áreas básicas continuam à espera de programas estruturantes: saúde, educação e segurança. Só para lembrar: o Brasil gasta três vezes mais que a China com saúde, mas tem indicadores mais baixos. Gastos com educação chegam a 5% do PIB, mas os estudantes brasileiros exibem os piores desempenhos na lista da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). E a segurança pública continua um caos.
Essa é a rápida leitura sobre a dúvida expressa pela mídia internacional.
Pode-se falar de novo "milagre econômico"? Ou apenas de um grande avanço? Sob o signo da arrogância, emerge um pedaço de um passado de triste memória, coberto pela faixa "Brasil, ame ou deixe-o".

(*)Jornalista, é professor titular da USP e consultor político

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