domingo, 29 de novembro de 2009

A hora da colheita


Bellini Tavares de Lima Neto (*)


Nem é preciso reafirmar o quanto é de indignar o estado de degenerescência da política brasileira. O grau de desfaçatez e cinismo que se encastelou no poder e impera no cenário público nacional é algo de inimaginável. Seria, contudo, inimaginável se não fosse a mais concreta expressão da realidade em que se encontra o país. E não há esperanças de que essa situação seja modificada em 2010. O projeto de permanência no poder por trinta anos, anunciado quando da ascensão ao poder dos atuais senhores feudais, se mostra cada vez concretamente plausível de ser alcançado. No entanto, tudo isso merece uma reflexão mais profunda.

Quando às vésperas de o atual ocupante do palácio da Alvorada ser ungido à posição de presidente da república (com o meu voto, lamentavelmente), eu li na secção de cartas do “Estadão” um texto curto, porém extremamente oportuno e inteligente fazendo uma análise do que aquilo significava. O autor dizia que as elites haviam nutrido um imenso descaso pelas coisas do país, de sua população, da sociedade em geral, que havia sido tão irresponsável e desleixada, sem consciência ou pudor, que havia levado àquela situação: a perspectiva concreta de uma eleição desastrosa. Prosseguia ele dizendo que havia sido mais de 500 anos completo deboche, a ponto de, agora, aquela eleição ter-se tornado inevitável. E concluía dizendo que nada esperava do futuro governo, mas, seguramente, o país nunca mais seria o mesmo depois da aventura que se avizinhava.

Nunca me esqueci desse texto (até devo tê-lo guardado comigo em algum arquivo). 
Não foram precisos dons especiais como supostamente os de Nostradamus para tal previsão ou profecia. Pensando só um pouco, o raciocínio do leitor foi perfeito e cada vez se mostra mais apropriado. Esses galhofeiros e suas atitudes, sua arrogância, seu desprezo pela seriedade e pela decência, tudo isso é rigorosamente fruto do desleixo com que o país foi tratado a vida inteira. O desmazelo sempre imperou por aqui. 

Durante décadas, por exemplo, o Brasil e o Rio de Janeiro cantaram em prosa e verso a figura do malandro que nada mais é senão um meliante sem ética que explorava a ingenuidade dos otários e a prostituição das mulheres. O malandro não trabalhava, vivia de expediente, cometia pequenos delitos e se vangloriava disso tudo. Era enaltecido pela música popular brasileira. Hoje aquele malandro, como diz o grande Chico Buarque de Holanda, não existe mais. 
É claro que não. Ele evoluiu e se tornou chefe do tráfico. Hoje ele não mata mais com navalha, mata com armas de guerra, enfrenta a polícia, derruba helicópteros, domina os morros e aterroriza a população. O romantismo do jogo do bicho controlando o carnaval e o futebol deu lugar ao banditismo, ao quadrilheirismo, a verdadeira guerrilha urbana que a polícia e o exército, tão eficientes contra os pretensos guerrilheiros dos anos da ditadura, não têm recursos para enfrentar.

É claro que o Rio de Janeiro é apenas um só dos exemplos, mais eloqüente, talvez, mas só uma amostra da verdadeira face do Brasil. Essa imensa população carente de tudo, desde comida até cidadania, aviltada em sua dignidade humana, sem mínima semente de cultura, sem auto-estima, insensível a padrões morais e éticos, que tudo releva e tem um altíssimo nível de permissividade, essa população hoje ganhou as sobras do banquete e reverencia quem as tem distribuído. Porque essa massa disforme nunca conseguiu ganhar contornos de sociedade, de nação? 
Porque desde os princípios da existência destes tristes trópicos, se nutriu dessa vitamina às avessas, se fartou dessa falta de compostura que lhe foi ministrada por uma elite indecorosa e ávida de egoísmo e individualismo. Os capitães da política nacional são da mesma laia desde sempre, desde o começo da vida desta triste aldeia que ainda se mostra carente de requisitos para ser alçada a condição de país respeitável. Basta uma olhadela rápida sobre esse recente episódio que afetou nada menos que 18 estados da União. 

O apagão (nome igualmente indevido já que esse é o nosso estado natural, o da inteira falta de luz) serviu às oposições para fazer alarido contra os que hoje estão refestelados no poder central que diz governar o Brasil. E esse dito governo, cínica e debochadamente, declarou que o assunto está encerrado. 
Quem, dentre todos os que falaram a respeito, de ambos os lados, está minimamente preocupado com o pais, com as conseqüências do fato, com as causas do fato, com as razões, com as falhas, com o que pode afetar o país?. Ninguém, é claro. Os encastelados no poder estão preocupados em se livrar dos respingos da lama e preservar a imagem (?) da futura castelã. Os que andam em busca de abocanhar o mesmo osso se ergueram em gritaria pensando em como lhe tomar o lugar.

Foi isso que o Brasil criou para si. O tão decantado “isso que está aí” continua aí até com mais vigor e oxigênio. E reflete com fidelidade a cara do país. É a colheita da nossa semeadura. E o que fazer? A meu ver, nada. Só nos resta esperar que, mais uma vez, tudo se deteriore ao extremo e caia de podre. Isso ninguém consegue evitar. 
O que é podre só faz apodrecer cada vez mais e, um dia, o peso da matéria em decomposição imundície se torna insustentável. 
E tudo cai. 
Não creio que estejamos mais por aqui quando isso acontecer. 
O que não impede que se continue pensando e nos indignando, mas cientes de que só, quem sabe, as futuras gerações verão a queda do fruto podre. E saibam plantar coisa melhor para que a história não se repita.

(*) Advogado - morador em S. Bernardo do Campo São Paulo - 
Escreve no site  http://blcon.wordpress.com/
Artigo publicado na edição de ontem no jornal O Estado do Tapajós

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