Tragédias anunciadas
Perto de 2 mil pessoas, no Rio e em São Paulo, compareceram domingo ao enterro das vítimas dos deslizamentos de terra e desabamentos de construções, causados pelas chuvas na passagem de ano. Famílias inteiras foram dizimadas, pessoas passam pela dor indizível de perder, de uma só vez, filhos, pais, irmãos e amigos, nos dias em que comemoravam a entrada de ano - em hotéis e pousadas ou em suas próprias casas. Em Angra dos Reis, o número de mortos já passa de cinco dezenas e deve aumentar com a continuidade das buscas. Cidades do Vale do Paraíba - como Cunha e São Luís do Paraitinga - também foram seriamente afetadas pelas águas do fim de ano, gerando prejuízos pessoais, materiais e culturais de monta, além dos sofrimentos indescritíveis causados pela calamidade meteorológica.
Numa cidade com construções de grande valor histórico, como é São Luís do Paraitinga, foram destruídas a Igreja da Matriz, do século 19, a Igreja da Nossa Senhora das Mercês, do século 18, e desabaram ou ficaram comprometidas 70 das 90 construções tombadas pelo patrimônio histórico. Lá o Rio Paraitinga subiu nada menos de 10 metros, obrigando mais da metade da população a deixar suas casas.
Rodovias interditadas por desabamento de ponte, como a Oswaldo Cruz (de Taubaté a Ubatuba), ou o aparecimento de enormes crateras, como a do km 477 da Rio-Santos, condomínios e comunidades ameaçados de desmoronamento, moradores em casas de alto risco que se recusam a sair por medo de saques de seus pertences - tudo isso compôs o cenário da devastação causada pelas chuvas.
Ante a perplexidade geral causada pela soma de tantas tragédias não há como escapar de indagações básicas. Tais tragédias eram previsíveis? Se eram, teriam sido evitáveis? Há calamidades que são inevitáveis e imprevisíveis. É o caso de terremotos, maremotos e erupções vulcânicas, principalmente em regiões que não dispõem dos recursos tecnológicos que já permitem uma previsão segura desses fenômenos.
No caso brasileiro, no entanto, o que há são "tragédias anunciadas". É o que acontece com edificações, frequentemente ilegais, erguidas sem maiores cuidados em locais de notório risco, especialmente em encostas de morros, sujeitas a deslizamento de terras e pedras, e em várzeas de rios, sujeitas a enchentes. Terá sido esse o caso da Praia do Bananal, em Angra dos Reis, onde a ocupação desordenada de espaço em área paradisíaca produziu consequências devastadoras.
Bem a propósito, a ocupação dessa parte do litoral fluminense havia sido "flexibilizada", no começo do ano passado, pelo governo do Estado. Mas, infelizmente, esse caso não constitui exceção, em relação a ocupações irresponsáveis de encostas em boa parte do litoral e das áreas de risco das cidades brasileiras.
Prefeituras e Legislativos municipais diminuem cada vez mais as restrições para a construção de casas e altos edifícios em terrenos perigosos. Aumenta-se fortemente a densidade populacional das praias, sem cuidados com a infraestrutura de água, esgoto ou o mínimo de preservação ambiental.
Na raiz de tudo isso estão a corrupção, a ambição desmedida e a desídia. Fiscais recebem propinas para "fazer vistas grossas" a construções irregulares, de simples barracos a luxuosas casas de veraneio. Vereadores e prefeitos aprovam leis "liberalizantes" de ocupação do solo, tendo como pretexto o "desenvolvimento econômico" e a criação de empregos nos municípios - quando, na verdade, o que está em jogo, de um lado, são milionários interesses imobiliários e, de outro lado, o financiamento de campanhas ou a acumulação das famosas "sobras da campanha eleitoral".
A população, em geral, não associa a corrupção, a ambição e a desídia à deficiência dos serviços públicos. Não são todos que percebem que o dinheiro gasto na corrupção ou na satisfação de ambições ilimitadas é o que falta para os postos de saúde, as escolas, as habitações decentes e seguras.
Só quando ocorrem essas "tragédias anunciadas" a população pode sentir de perto o alcance da corrupção - a destruição de famílias inteiras, dentro de casas que não poderiam ter sido construídas naqueles locais. Esta é a trágica lição deste ano-novo de luto.
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