Imagine a cena: uma jornalista à beira de uma cachoeira no bucólico Vale da Lua, que faz jus ao nome e fica próximo ao povoado de São Jorge, em Goiás. De repente, ela se lembra de algo importante no trabalho. Enxuga a mão, saca um celular e dali mesmo liga para Brasília e/ou São Paulo, sem a menor cerimônia e sem o menor problema.
A situação, além de insólita, tem algo de ridículo, de falta de bom senso. E é assim que, num estalo, a jornalista percebe que ali, naquele aparelho celular que pesa alguns gramas e cabe na palma da mão, ela tem tudo do que precisa para se comunicar com o mundo.
Foi-se o tempo em que nossos pais e avós encantavam-se com relógios Patek Philippe ou mesmo que nossos amigos e filhos divertiam-se com essas marcas moderninhas, de pulseiras de plástico coloridas.
Para que relógio, se o celular tem? Para que despertador? E calculadora? Agenda? Gravador? Câmera? Filmadora? E para que jornal, rádio, até TV?
Tudo parece coisa do passado e nem mesmo novos equipamentos escapam, como o GPS. Para que GPS, se o celular já tem? E para que, afinal, computador, se você já acessa sites, e-mails, SMS, twiter, vê o tempo, acompanha a Bolsa, tudo pelo maldito celular?
É como se a sua vida estivesse toda ali naquele aparelho infernal, fantasma de você mesmo que te persegue onde quer que você esteja, seja no burburinho urbano, seja numa cachoeira no meio do nada. Até no banheiro!
Pensando bem, é assustadora a perspectiva de ficar totalmente nas mãos gananciosas das operadoras de telefonia, que têm aquela arrogância dos indispensáveis e dão risadas até da Anatel e do Procon, imagine só do consumidor!
Nessas horas, eu quero ter tudo de volta, no "old fashioned way": meu bom e velho relógio, minha agenda camarada, minha calculadorinha de bolso, minha câmera infalível, meu super-gravador digital. Até comprar uma filmadora, quem sabe? E meter um GPS bem vistoso no vidro da frente. Além, claro, de abraçar e lustrar meu laptop já meio gasto de tantas viagens.
O deus celular pode tudo, mas quem tudo pode também pode te engolir. Por isso, acho que vou sair correndo para ter um choque de realidade e rever, mais uma, mais duas, mais dez vezes "Cinema Paradiso". É aquele filme lindo em que você, se derretendo em lágrimas, prevê o fim do cinema. Um fim que nunca chegou, graças a Deus!
Tomara que não chegue agora, com o bendito e maldito celular. Já imaginou assistir "E o Vento Levou" numa tela de meio palmo, em pleno Vale da Lua em Goiás?!
Eliane Cantanhêde é colunista da Folha de São Paulo desde 1997.
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