Bellini Tavares de Lima Neto (*)
Se não me trai a memória, foi numa quarta-feira. Na verdade, a memória jamais me trairia numa situação como essa.
Foi exatamente numa quarta-feira ali pelas oito da noite. Só que já lá se vão mais de 20 anos. 24 para ser mais preciso. Eu estava chegando a casa depois de um dia comum de trabalho, tirando gravata, sapato, essas coisas que compunham a armadura de um guerreiro urbano.
Sem mais nem menos lá veio a pergunta formulada com a articulação própria de uma garotinha de seus sete anos. “Pai, as meninas lá na escola vivem me dizendo que eu sou boba de acreditar em Papai Noel, que Papai Noel não existe, que é você que compra os presentes. Isso é verdade?”
Responder a essa pergunta me reportou aos tempos de chumbo da ditadura militar quando alguém era indagado sobre o paradeiro de algum suspeito.
Eu já me senti a um passo da tortura. E a pergunta vinha justamente de alguém que sempre levou muito a sério a figura do Papai Noel e tinha por ele uma veneração de emocionar.
Todo Natal o ritual se repetia.
Quando a meia noite se aproximava alguém tratava de sair com as crianças para procurar o Papai Noel enquanto eu subia para o meu quarto e vestia o uniforme celestial. Elas, então, retornavam à casa, um sino era ouvido, as luzes se apagavam parcialmente e eu descia como uma ascensão ao contrário.
As respirações eram todas suspensas e os olhos faziam força para contar as lágrimas de emoção e estupefação. E, diga-se de passagem, dos dois lados: do lado deles e do meu. Como, então eu faria para responder a uma pergunta como aquela?
Eu ainda não tinha sido inquirido a respeito de como as crianças nascem e coisas sobre sexo, o que só aconteceu alguns anos depois e deu margem à uma das conversas em família mais surrealistas de que alguém já pode ter tido noticia.
Quase uma hora de bate-papo pós jantar numa linguagem mais chula que a de estádio de futebol, exatamente a linguagem que eles começavam a ouvir na escola.
Mas isso foi depois e muito mais fácil do que responder à pergunta daquela criaturinha me exigindo o que talvez tenha sido exigido dos grandes filósofos que povoaram a história da humanidade.
Minha saída foi fugir.
Dizer a ela que as amiguinhas tinham razão seria sangrar seu pequeno coração. Seus olhos me diziam que não era essa a resposta que ela esperava de mim, naquele momento sua última tábua de salvação.
Não dizer a ela, por outro lado, seria assinar uma declaração quase pública de que eu não poderia mais servir de fonte da verdade justamente para a minha pequena criança.
Era evidente que eu precisava de tempo para me preparar para aquela batalha afetivo-psicológica.
Ninguém é bom profeta em sua terra e eu não seria exceção. Precisava me preparar, consultar os astros, aqueles a quem recorremos em situações periclitantes.
“Filha, vamos fazer o seguinte. No sábado a gente vai até o “shopping” para conversar sobre isso. Mas, não se preocupe, viu”.
Isso foi o que eu consegui de improviso e ela me fez o favor caridoso de se acalmar. Afinal, havia uma esperança, ela deve ter pensado. O sábado chegou e ela se lembrava muito bem da promessa.
Lá fomos nós para o que a mim me parecia o patamar da forca e, para ela, quem sabe, o alivio para a aflição que certamente tomava conta dela já há algum tempo.
Procuramos a nossa lanchonete e eu comecei o meu discurso.
Tentei explicar a ela a respeito das coisas concretas e das coisas abstratas. Falei que abstratas eram as coisas que se sentia embora não se pudesse enxergar. Como o nosso amor por ela, por exemplo. Muitas coisas abstratas estava sempre nos cercando, nós sentíamos, sabíamos que existiam mas nem por isso se podia ver.
Assim era o Papai Noel.
O Papai Noel significava a beleza e a ternura do Natal, o amor que se espalha no ar, aquela alegria que tomava conta de nós a ponto de passarmos um ano inteiro esperando por aquele momento mágico.
O Papai Noel representava tudo isso, todo esse sentimento abstrato e, portanto, é claro que ele existia, sim. Mas aquela figura do velhinho sorridente que distribuía presentes, essa era só um símbolo. E era por isso que, toda noite de Natal, eu colocava aquela roupa para representar a figura abstrata do sentimento de amor do Natal.
Assim fui falando e acabei até me distraindo um pouco dela, tudo no afã de fazer com que a revelação fosse menos difícil de digerir. Só que, quando terminei e olhei nos seus olhos, as lágrimas estavam por ali, atraindo as minhas.
Foi o melhor que consegui fazer e certamente fiquei marcado na sua pequena memória como a sua primeira grande decepção.
As semanas se sucederam e finalmente chegou o dia do Natal. Foi um Natal estranho, pois eu não poderia deixar os outros pequenos sem a aparição do Papai Noel.
Mas, se desde o sábado da revelação, eu já vinha cuidando dela com mais atenção, naquele dia redobrei a vigilância. Como ela iria reagir?
O dia passou, chegou a noite, casa cheia, o burburinho de sempre e, finalmente, a meia noite foi se aproximando. Era o momento de iniciar o ritual. Quando, então, alguém chamou as crianças para o passeio pré-chegada, a minha pequena se aproximou de mim e me perguntou baixinho:
“Pai, posso ir com você se vestir de Papai Noel?” Sim, minha querida, você pode.
E lá fomos nós selar o nosso segredo para sempre.
E quando eu desci, pela primeira vez, houve uma criança na sala que tinha nos olhos, umas lágrimas um pouco diferentes. Um pouquinho da sua infância tinha ficado na mesa da lanchonete naquele sábado.
Os anos se passaram, quase vinte e eu, finalmente, tentei me retratar com a minha pequena. E fiz isso por meio de uma canção que escrevi para ela contando a nossa história, o nosso primeiro confronto com a realidade.
(*) Advogado , avô, morador em S. Bernardo do Campo (SPO).
Escreve para o site O Dia Nosso De Cada Dia - http: blcon.wordpress.com
Um texto lindo, emocionante, singelo que não há como não chorar .
ResponderExcluirParabéns ao autor e principalmente a filha que tem que amar muito esse pai.
Ao ler logo lembrei de meu pai que mesmo eu já sabendo da história do Papai Noel ele insistia sobre sua veracidade. Fingi que acreditei e por algum tempo curtia sua fantasia e sua entrega de presentes junto com meus irmãos e primos . Uma época de ouro que nos traz saudades e muita emoção. Belo texto. Parabéns .
ResponderExcluirLindo .. lindo . Parabéns ao sr Bellini
ResponderExcluirMuito legal. Uma demonstração de carinho e respeito pela criança acima da média. Outro pai não teria dado tanta importância para um assunto que naquele momento era de extrema importância para a criança. Valeu. Parabéns ao autor.
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