segunda-feira, 30 de abril de 2012

O doutor e o professor

José Roberto de Toledo (*) para O Estado de S.Paulo 

Doutor e Professor cresceram juntos, não na vida, mas no poder. Trajetórias sincronizadas: a cada favor trocado, um passo adiante e um degrau acima. De sua simbiose política surgem negócios, nomeações, sentenças, manchetes, facilidades. Doutor é a face pública da dupla, reluz nos palanques, tonitrua aos microfones. Professor articula nos bastidores. Deveria ser opaco, pois brilhar nas profundezas onde opera atrai atenção indesejada. Mas a vaidade nem sempre é controlável. 

Para entrosar o jogo, falam-se várias vezes ao dia, encontram-se sempre que possível. Ao telefone, Professor só chama o parceiro de doutor. Doutor retribui, íntimo: "Bom dia, professor. Tranquilo aí? Sossegado?". Ler os diálogos de Doutor e Professor no inquérito em que se transformou sua parceria é uma aula sobre como funciona parte do Brasil. A de cima. 

Aprende-se como usar o Estado para agradar o esposo, resolver problemas familiares ou alavancar grandes oportunidades de investimento. Do trivial completo ao banquete de verbas públicas, o cardápio satisfaz magros, gordinhos e ex-gordos. 

Doutor quer comprar uma mesa na Argentina, presente para a mulher. Custa-lhe mais do que ganha em um mês como senador. Ao amigo, não reclama do preço, mas da alfândega: "Até que não é cara, mas é difícil de trazer". O mimo excede 35 vezes o limite de compras no país vizinho. Pede uma mãozinha. "Pode comprar que eu dou um jeito", tranquiliza Professor. 

Professor precisa de um cargo público para a prima, mas em outro Estado. Se fosse no seu, dispensaria intermediários. Como não é, pede a Doutor que interceda junto ao colega de Senado que manda naquelas plagas. Após falar com o ex-governador, Doutor explica que as nomeações de chefes regionais no Estado vizinho são feitas pelo deputado da região. Carece aprovar com ele também, o que não chega a ser problema. Menos de duas semanas depois a prima está nomeada. 

Trivialidades desse tipo são cacos nas conversas da dupla. Na frequência dos bate-papos, banalidades são entremeadas com questões de Estado. Decisões de tribunais superiores misturam-se ao regozijo com a queda de um desafeto comum. Discussões de estratégias eleitorais seguem-se a considerações sobre negócios milionários. 

Doutor liga para professor e comemora que um magistrado supremo "mandou buscar" processo em instância inferior para julgar na sua corte. A ação envolve empresa do Estado deles. "Deu repercussão geral pro trem aí", resume Doutor, no palavreado que reserva às conversas com Professor. Não quer dar uma de tribuno com o amigo.


Noutras vezes, a conversa tem de ser em pessoa. Professor não mede recursos para ter o associado por perto com rapidez. Manda buscá-lo onde for: "Não esquece do avião, taí (te) esperando". Doutor se desculpa: "Dei uma enrolada aqui. Tô chegando aí. Você vai estar na sua casa?" 

Professor representa os interesses da empreiteira que mais recebe verbas do governo federal: pelo menos R$ 3,7 bilhões nos últimos 9 anos. Está preocupado com reportagem publicada sobre a empresa. Se o assunto esquentar, a empreiteira pode perder dezenas de milhões em contratos públicos. Doutor aciona seus contatos entre jornalistas e explica ao parceiro: o foco da investigação não é a empresa, mas um inimigo da dupla, que também fazia negócios com a empreiteira. 

Até que o azar cruzou a sorte da dupla. Mais especificamente os jogos de azar, atividade que impulsionou a carreira do Professor. 

Desde a prisão do Professor, há dois meses, seu nome e o de Doutor ganharam manchetes como nunca. Os dois caíram na boca do povo e nos dedos dos internautas. As pesquisas sobre ambos na internet viraram febre, especialmente no seu Estado de origem. Nos primeiros 30 dias de estrelato involuntário, apareciam sempre juntos. Mas isso mudou. 

No último mês, Doutor se recolheu, fugiu da ribalta e seu nome perdeu evidência, enquanto o do Professor pipoca cada vez mais. Pela primeira vez em anos os caminhos dos parceiros se separaram. Não há mais telefonemas, muito menos visitas. A estratégia de um é se desvencilhar do outro: provar que as provas de cumplicidade, mesmo que verdadeiras, são formalmente inúteis. Querem apagar seu passado comum. 

Já houve tempo em que Doutor e Professor rivalizavam para ver quem bebia os vinhos mais caros, quem tinha a mulher mais jovem e bonita, quem podia mais. Agora, disputam quem tem o advogado mais caro. Sua ascensão simbiótica foi interrompida. Outros doutores e professores se preparam para ocupar o seu lugar. 

(*) Jornalista é um dos fundadores da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo e da agência PrimaPagina 

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