domingo, 17 de fevereiro de 2013

Meia dúzia de cinzas fora de tom

Bellini Tavares de Lima Neto (*) 

É uma pequena casa lotérica instalada na avenida principal da praia de Maresias. Claro, é a única. Para quem não tem o hábito de fazer sua fézinha, as casas lotéricas são um ambiente curioso e muito educativo. Ali se faz de um tudo: paga-se contas, tira-se um dinheirinho desde que seja da Caixa, recebe-se uma ou mais das bolsas que tanto sucesso andam fazendo por estas bandas. E, logicamente, joga-se em todos os joguinhos que não são proibidos. Pode-se até fazer uma fezinha num dos 25 bichos inventados pelo “Seu Drumond” no século retrasado (para quem não, o joguinho Foi inventado em 1892 pelo barão João Batista Viana Drummond, fundador e proprietário do jardim zoológico do Rio de Janeiro, em Vila Isabel, no Rio e Janeiro). Mas, desde que seja por intermédio da Loteria Federal. Afinal, jogo do bicho não pode. 

Pela diversidade de funções é possível se ter uma idéia da idêntica diversidade de pessoas que se aglomeram numa casinha lotérica, especialmente quando é uma quarta-feira pós Carnaval, aquele dia em que muitos religiosos vão pedir perdão pelas folias da carne, exatamente como fizeram religiosamente nos anos anteriores. Depois de alguns dias de folga, a vida recomeça com força total ou, melhor dizendo, com obrigações totais. E a casinha lotérica vai enchendo, enchendo, formando uma fila que já chega na calçada. Do outro lado da rua, só o mar balançando calmamente, completamente alheio ao que vai se passando bem a sua frente. 


Guichês para caixas são três, mas ninguém agüenta um exagero desses. Ali estão duas mocinhas e uma delas tem fome. São três e meia da tarde e ninguém é de ferro. A mocinha com fome resolve ir buscar seu lanchinho e fecha o seu guichê. Agora é só uma heroína da resistência para enfrentar a fila que vai aumentando. Chega um sujeito desses parrudos, braços do tamanho da coxa de muita gente, sem camisa, falando e rindo alto. Parece um sujeito popular ou com muita pretensão a isso. Carrega uns doces, chocolates e vai até o guichê oferecer os ditos. Pelo jeito, o distinto vende essas coisas. Não é possível saber exatamente porque o homem ri mais do que fala. 

No guichê, a mocinha que ficou tenta atender a demanda. Lentamente, bem lentamente. Chega de volta a segunda mocinha e, depois de um pouco de tempo, abre o seu guichê. Mal termina de atender um dos integrantes da fila, chega uma mulher carregando uma criança. E passa na frente de toda a fila. Natural. Demora-se por lá bem uns 10 minutos. Deve estar pagando alguma coisa. A fila espera pacientemente. Finalmente, a mulher termina sua função e sai com a criança no colo. Bem em frente à lotérica está um automóvel estacionado com um casal ocupando o veículo. A mulher se aproxima, a passageira desce, abaixa o banco para que a mulher entre no carro. A mulher entrega a criança para a que está de fora do carro, entra no banco trazeiro e a passageira reassume seu lugar ao lado do motorista que dá a partida e se vai embora. Ufa, ganharam um tempão sem ter que esperar na fila que permanece lá, calma e serena, o homenzarrão falando alto e fazendo piadas que provocam algum riso, não muito. Ele ainda não é o sucesso que pretende. 

A mocinha que acabara de atender a mulher e sua criança agora atende alguém da fila. Assim que termina, no entanto, já existe um senhorzinho de estatura bem prejudicada e jeitão de velhote um pouco fora de sintonia. Aproxima-se com um cartão da Caixa na mão e um papel que pode ser uma conta a pagar. Antes, porém, que ele comece sua função chega a menina. Deve ter seus 17 ou 18 anos. Encosta-se no senhorzinho e parece estar com ele embora só tenha se aproximado um pouco depois. Ela trás nas mãos alguns maços de dinheiro, dinheiro miúdo, notas de dois reais. A mocinha do guichê começa a contagem. Mas era muito dinheiro miúdo. A contagem vai se desenrolando sem muita pressa. Chega um momento em que alguma coisa não dá certo. Instala-se um impasse entre a mocinha do guichê e a menina de seus 17 ou 18 anos que havia se aproximado do senhorzinho e o tinha colocado na posição de coadjuvante. 

Agora ela protagonizava a cena. Pelo menos foi o que pareceu no começo porque, com a insistência do impasse, aproxima-se uma outra, esse um pouco mais velha e bem mais dotada de massa corporal. A mais massuda entra em cena e a conversa se arrasta entre as três. O senhorzinho continua ali com sua aparência de quem está um pouco fora da sintonia. 

Nesse momento um dos integrantes da pacífica fila faz um comentário inteiramente despretensioso com um cidadão que está bem atrás de si. Fala alguma coisa sobre a atitude da mulher com a criança no colo e sobre as duas mocinhas, a mais nova e a mais massuda. Sugere que isso tem certa semelhança com as licenças da prefeitura que são obtidas com uma propinazinha. E não perde a chance de comentar sobre as conseqüências dessa incontrolável propensão à facilitação dos processos. 

A fila começa a se movimentar um pouco mais, rostos se voltam para trás, alguns sorrisos pouco simpáticos começam a aparecer nas fisionomias dos integrantes da fila. Enquanto a temperatura oscila ligeiramente para o alto, as duas mocinhas, a mais nova e a mais massuda, finalmente terminam suas funções. Vão se afastando do guichê comentando em voz alta a sorte que tinham tido, pois, do contrário não iriam conseguir sair dali antes das seis da tarde. Passam pelo grandalhão falastrão e trocam uns comentários amistosos que rendem mais uma sessão de risadas altas de parte do candidato a famoso. 

Nessa altura, o burburinho já tinha ganhado alguns centelhas e vozes já se alçavam para sentar a mandioca na atitude das duas mocinhas, a mais nova e a mais massuda que, num gesto de sincera gratidão, agradeceram o senhorzinho meio abobado que continuava no guichê tentando resolver o seu problema. 

O grandalhão barulhento resolveu aproveitar a cena para ver e capitalizava alguma notoriedade e saiu em defesa das duas amigas, o que lhe valeu uma contestação mediana uma vez que o seu tamanho impunha um certo respeito. Melhor dizendo, uma certa intimidação. Usou de sua massa muscular para afirmar que aquilo não tinha nenhuma importância e que se alguém de trás da fila quisesse lhe dar suas contas para pagar, ele pagaria porque era seu direito. 

 A fila continuou ali, cordata, apenas com uma ou outra careta. É difícil dizer se alguém entre os presentes saiu dali pensando naquilo tudo. 
O que eu sei, e posso assegurar é que, mais à noitinha, fui acessar a “internet” pra ver o resultado e, mais uma vez, não deu nada. 

Que dureza, não? 

(*) Advogado, avô e corintiano morador em São Bernardo (SP)
 

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