Drauzio Varella (*)
Tenho contato com usuários de crack há 21 anos.
Em entrevista à jornalista Cláudia Collucci, publicada na Folha em 28 de janeiro, expus o que penso sobre a internação dos usuários contumazes.
Recebi alguns e-mails de pessoas que concordaram com as razões por mim expostas; outros, com críticas civilizadas e inteligentes, como as de meu colega da Folha Hélio Schwartsman, de quem sou leitor assíduo; outros, ainda, indignados, que só faltaram acusar minha progenitora de haver abraçado a mais antiga das profissões.
Ao defender a internação, expressei minha revolta contra os que politizam esse tema, com jargões dos anos 1960. Infelizmente, alguns profissionais que prestam assistência a usuários nas ruas sentiram-se ofendidos. A eles peço desculpas, não foi minha intenção generalizar, eu me referia aos que se manifestam em consonância com agendas pessoais distantes da realidade.
Quando exponho ideias que são contestadas por quem pensa de maneira radicalmente oposta, procuro fazer um esforço sincero para aceitar os argumentos contrários como se fossem meus, e tivesse que defendê-los num debate imaginário. Esse contorcionismo intelectual tem me ajudado a rever posições que julgava definitivas.
Neste caso, entretanto, há aspectos que me impedem de mudar de opinião, ainda que me acusem de autoritário e fascista, deformações alheias à minha personalidade.
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Minha experiência com usuários de crack começou na antiga Casa de Detenção, em 1992, ano em que essa praga desalojou no presídio e nas ruas a moda de injetar cocaína na veia.
Perdi a conta de quantos óbitos atestei nos dez anos seguintes; meninos e homens maduros mortos por overdose ou assassinados a facadas por seus credores. Vi jovens fortes definharem até a caquexia, contrair tuberculose e morrer com o cachimbo ao lado. Fiz diagnóstico de infarto do miocárdio e derrame cerebral por overdose em rapazes de menos de 30 anos. Ladrões de renome entre seus pares suplicavam para ser trancados em cela forte, única saída para fugir da tentação.
Hoje, na penitenciária feminina, vejo meninas presas na cracolândia repetir o que jamais imaginei ouvir: "Graças a Deus vim presa. Se continuasse naquela vida, já teria
morrido".
Internar à força alguém em pleno domínio das faculdades mentais é inaceitável, mesmo quando há risco de suicídio. Decidir conscientemente despedir-se da vida é direito tão inalienável quanto o de lutar para preservá-la.
A diferença, no caso do crack, é que não consigo me convencer de que o menino com o cobertorzinho nas costas, pele e osso, sem forças sequer para roubar, reúna condições psíquicas para tomar outra decisão que não seja a de ir atrás da próxima pedra.
Não falo de usuários ocasionais, passíveis de abordagem ambulatorial, mas de pessoas gravemente enfermas que correm risco de morrer de pneumonia, tuberculose, overdose ou nas mãos dos desafetos.
Deixá-los nas ruas à espera de que resolvam procurar ajuda por livre e espontânea vontade ou sejam convencidos por profissionais competentes e bem-intencionados pode dar resultados concretos para alguns casos, mas exige um tempo de sobrevivência que a maioria dos doentes mais graves não dispõe.
Você poderá dizer que essa estratégia é cara e de eficácia duvidosa. Pode ser, mas para os casos mais dramáticos não vejo outra.
Mesmo que ao sair da clínica o usuário recuse o acompanhamento ambulatorial e volte para a cracolândia, terá valido a pena. Estará com mais saúde, terá recuperado parte do peso perdido e sido tratado das doenças que o debilitavam.
Se for mulher grávida, terá acesso aos exames pré-natais e chance de permanecer abstinente até o fim da gravidez, possibilidade remota na rua.
É evidente que o impacto será muito menor se, ao receber alta, o ex-usuário for abandonado à própria sorte. Haverá necessidade de recursos financeiros para a criação de ambulatórios e formação de pessoal especializado. Também custará caro, mas a sociedade está diante de uma tragédia humana sem
precedentes.
Todos os países que destinaram áreas públicas para o consumo de drogas ilícitas desistiram da experiência porque houve aumento da mortalidade. Nossas cracolândias por acaso não são espaços públicos destinados ao livre consumo?
(*) Médico cancerologista
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