sábado, 9 de fevereiro de 2013

Beijo do desprezo

Cristovam Buarque (*) 

Não é difícil perceber como as manchetes das revistas do último final de semana se referem à tragédia humana da boate Kiss de Santa Maria: "Quando o Brasil vai aprender?", "A asfixia não acabou", "Tão jovens, tão rápido e tão absurdo" e "Futuro roubado”. 

É também uma tragédia que pode ser associada às escolas de todo o Brasil. É como se a boate de Santa Maria fosse uma metáfora da escola brasileira. 

Na primeira delas, os jovens perderam a vida por inalar um gás venenoso; na outra as crianças perdem o futuro por não inalarem o oxigênio do conhecimento. 

A imprevidência de proprietários, músicos e fiscais levou à morte por falta de ar; à de políticos, pais e eleitores levam a uma vida incompleta por falta de educação. 

A tragédia despertou para os riscos que correm nossos jovens em seus fins de semana em boates, mas ainda não despertou para o que perdem nossas crianças e jovens no dia a dia de suas escolas. 

Estamos fechando boates sem sistemas de segurança, mas ainda deixamos abertas escolas sem qualidade. Os pais começaram a não deixar seus filhos irem a boates inseguras, mas levam confiantemente suas crianças em escolas que não asseguram o futuro delas.

Exigimos que as boates tenham portas de emergência, mas não exigimos que as escolas sejam a porta para o futuro das crianças. 

A tragédia de Santa Maria provoca a percepção imediata da fragilidade vergonhosa na segurança de boates, mas a tragédia de nossa educação, apesar de suas vítimas, não é percebida. Isto porque ela é uma tragédia à qual nos acostumamos e nos embrutece, ou porque são crianças invisíveis pela pobreza, ou ainda porque somos um povo sem gosto pela antecipação, só ouvimos o grito de fogo e vemos a fumaça depois que matam. 

Por isso fechamos os olhos à tragédia da educação que hoje devasta a economia, a política e o tecido social do Brasil. 

O abandono de nossas escolas não mata diretamente, mas dificulta o futuro de cada criança que não estuda. Se as escolas fossem de qualidade para todos, teríamos menos violência urbana, maior produtividade, mais avanços no mundo das invenções de novas tecnologias e um país melhor. 

Por isso, ao mesmo tempo em que choramos as trágicas mortes dos jovens de Santa Maria, choremos também pelo futuro das crianças que não vão receber a educação necessária para enfrentar o mundo. 

Choremos pelos que perderam a vida na boate ao respirar o ar venenoso, e pelos que não vão receber nas escolas o ar puro do conhecimento. 

Não vamos recuperar as vidas eliminadas na boate Kiss, podemos apenas chorar e nos envergonhar. 

Mas podemos evitar o desperdício das vidas que estão hoje nas “Escolas Kiss”: metáfora que une boate e escola, sobretudo, quando lembramos que a boate se chamava Kiss, nome que também deveríamos dar às nossas escolas de hoje: beijo do desprezo. Desprezo pelas vidas de jovens ou pelo futuro de nossas crianças.

(*) Professor da UnB e senador pelo PDT-DF 

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