sábado, 18 de setembro de 2010

O país dos favores

Roberto Romano (*) para O Estado de S.Paulo

"Tudo foi feito por amizade, favores".  Ana Maria Caroto Cano, justificando a quebra ilegal de sigilo alheio.
A frase acima, de funcionária da Receita Federal, sintetiza a cultura política do Brasil. 
Nascemos para o mundo sob o regime absolutista, no qual as funções de Estado foram monopolizadas pelo rei. Ele as cedia em troca de dinheiro, mas as exigia de volta a qualquer instante. Permanecer num cargo público significava favor real. O soberano concentrava alguns monopólios do poder: o controle da força física na guerra e na polícia. Além disso, só o Estado editava leis para o reino e se reservava a arrecadação dos impostos. Mas para garantir fidelidade o soberano comprava o apoio da nobreza, força dominante no sistema feudal, e da hierarquia religiosa. Privilégios, isenções e prebendas conseguiam a obediência, em consonância com o monopólio do poder. Nobres, padres, burgueses, somados às camadas populares, todos e tudo tinham seu preço. O nome da cooptação era "favor".

Os monopólios reais concentravam as políticas e as finanças públicas na Europa, inclusive em Portugal. O mesmo ocorria nos elos entre a colônia portuguesa e a corte. Os impostos seguiam para o rei, que os distribuía de acordo com a sua política. Nos países absolutistas, as cidades dificilmente auferiam retorno dos impostos. Trazer-lhes algo do butim financeiro era prerrogativa de pessoas ou grupos influentes, os quais deviam favores entre si e ao monarca.
Outra marca do absolutismo reacionário é o nome de "pai" atribuído ao chefe de Estado. O atual presidente dá a si mesmo esse título e outorga à sua possível sucessora a maternidade política sobre o povo. Assim, ele retoma Tiago I, o teórico Robert Filmer (no livro Patriarca, ou sobre o Poder Natural do Reis) e todos os conservadores idolatrados pela TFP. Sem falar nos ditadores como Vargas e os Peróns.

Dados a enorme extensão territorial do Brasil e os parâmetros absolutistas, as nossas políticas públicas - e a maioria dos impostos - foram açambarcadas pelos dirigentes, em Lisboa e depois na corte nacional. Impostos não retornavam (nem retornam) aos municípios. Maria Sylvia Carvalho Franco expõe a lógica do nosso Estado a partir daí. Com a penúria de recursos, municípios apelaram para técnicas de administração alheias aos limites entre o público e o privado. Vereadores emprestavam de seu bolso às cidades para efetivarem obras. Urbes sem cemitério, escolas, estradas, hospitais foram "beneficiadas" pelos empréstimos. Breve, diz a autora, veio a contrapartida: se quando o município precisa eu faço o favor de emprestar, quando eu preciso o município deve comparecer. Maria Sylvia Carvalho Franco relata casos como o do tesoureiro que jogava com a arrecadação no fim do mês. No outro, ele devolvia as somas. Processado, estranhou muito porque, na sua mente, o errado não seria pegar emprestado, mas não pagar (Homens Livres na Ordem Escravocrata).

Criou-se o solo político onde quem exerce o cargo público imagina a si mesmo, no mínimo, locatário e, não raro, proprietário da função. Tal crença vai dos altos postos executivos e legislativos (passando pelo Judiciário) aos baixos. Dali ruma para os eleitores. Estes últimos esperam do deputado, senador, governador, presidente e quejandos que eles prestem "favores" liberando obras para as cidades. E os primeiros, fiéis adeptos do tesoureiro citado, julgam legítimo apropriar-se de parte significativa dos recursos em troca dos "benefícios" que trazem para as bases. E nem mencionemos a fieira de bondades praticadas nos cargos públicos, desde indicações para empregos até isenção de impostos para quem investiu na campanha eleitoral.

Aquela funcionária da Receita age segundo a ética que deu nascimento ao Estado brasileiro. Ela julga, como parte de seus pares em todos os Poderes, que o cargo lhe pertence, bem como as informações que nele circulam. E imagina prestar favores aos amigos. Mas, como nos tempos do rei, nenhum favor é gratuito, tendo sua contrapartida em novos préstimos ou pecúnia. A confusão entre público e privado seria atenuada se ausente dos setores mais elevados do poder federal, estadual, municipal. Mas ocorre o contrário: os de baixo escalão imitam os que estão situados no topo. Todos os presidentes, governadores, senadores e deputados federais usam impostos para convencer os votantes sobre o "favor" devido à sua benevolente vontade. Nada estranho, pois, que o sr. Luiz Inácio da Silva mova o recurso em prol de si mesmo, de seu partido, de sua candidata.

Notícia deste jornal (13 de setembro) relata que em Santa Catarina, "referindo-se aos rivais na corrida presidencial, Lula voltou a afirmar que jamais na história o Estado recebeu tantos recursos quanto em seu governo. Enumerou R$ 1,2 bilhão em ajuda aos atingidos pelas enchentes de 2008, os R$ 129 milhões para obras de reconstrução das rodovias atingidas e os R$ 348 milhões destinados para a reconstrução do Porto de Itajaí, além de recursos repassados para a construção de quase 4 mil moradias no programa Minha Casa, Minha Vida. "Eu desafio qualquer um a provar se na história de algum governo passado já repassou tantos recursos para Santa Catarina como nós fizemos. O dinheiro veio. Se ele não foi aplicado da forma como deveria, é outra história."" E também citou: "No meu governo São Paulo recebeu mais dinheiro do que na época que era governado por Mário Covas e tinha o FHC como presidente."

O dinheiro não é do presidente, mas dos contribuintes, que aderem a todos os partidos, ideologias ou crenças religiosas. O sigilo não pertence à Receita, mas aos que pagam impostos. O resto é absolutismo anacrônico, mesmo quando aplaudido por nobres e pobres, numa República apodrecida pelo favor.

(*) FIlósofo, Professor de Ética e Filosofia da UNICAMP e Escritor


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