Eliane Cantanhêde
"É constrangedor que o presidente da República não entenda que o seu cargo deve ser exercido em sua plenitude nas 24 horas do dia. Não há 'depois do expediente' para um chefe de Estado."
"É constrangedor também que ele não tenha a compostura de separar o homem de Estado do homem de partido, pondo-se a aviltar os seus adversários políticos com linguagem inaceitável, incompatível com o decoro do cargo, numa escancarada manifestação de abuso de poder político e de uso da máquina oficial em favor de uma candidatura."
São trechos do "Manifesto em defesa da democracia", lançado hoje (quarta-feira, 22/09), em São Paulo, com a assinatura de gente do calibre moral e intelectual de Dom Paulo Evaristo Arns, Hélio Bicudo, Leôncio Martins Rodrigues, José Arthur Gianotti, Ferreira Gular, Carlos Velloso e Carlos Vereza.
Serve como advertência, num momento em que o país vive um conjunto de circunstâncias excepcionais: uma eleição fria nas ruas, quente na guerra entre os candidatos e preocupante quando o presidente da República joga o peso do cargo, o peso dos seus 80% de popularidade, o peso da comunicação e o peso da máquina pública a favor de um só lado. A disputa tornou-se totalmente desigual.
É a típica ação que comporta uma reação. Se desequilibrou para um lado, sempre haverá como reequilibrar para o outro. E vira uma guerra.
Lula exagerou na dose, assustou, jogou dúvidas sobre o futuro e principalmente irritou não apenas os adversários mas quem tem por ofício observar e comentar o processo eleitoral e aqueles em condições de vigiar o exercício da democracia. Daí o ícone Dom Paulo sair da habitual discrição para assinar um documento com essa força, esse apelo.
Lula poderia ter passado sem essa, e Dilma, mais ainda. O problema é que a alma
sindicalista de Lula falou mais alto e ele, inebriado com o próprio sucesso, assumiu o protagonismo total da campanha e não foi capaz de perceber que, a partir de um determinado momento, deixou de ajudar e passou a atrapalhar a trajetória de sua candidata. Durante mais de um ano em que estava em campanha escancarada, trouxe-lhe votos. Justamente quando ela disparou e estava pronta para ganhar tranquilamente em primeiro turno, passou a botar os pés pelas mãos, a atiçar a ira popular contra os adversários e contra a imprensa e a atrair para Dilma chuvas e trovoadas.
O clima é pesado, beligerante, e haverá uma nova batalha hoje, quando nada mais nada menos que o Sindicato dos Jornalistas de São Paulo abre suas portas para abrigar uma manifestação que pode ter de MST a UNE para protestar contra "o golpismo da imprensa". Seria melhor dizer claramente: contra a liberdade de a imprensa descobrir e anunciar ao digníssimo público, por exemplo, que havia uma central de nepotismo, abuso do poder e negociatas dentro do coração do governo --e justamente na pasta onde a candidatura Dilma foi gerada.
Antes, os sindicatos dos jornalistas se insubordinavam contra a censura e contra a corrupção. Como passar a se insubordinar contra a liberdade de expressão e contra os que denunciam a corrupção?
A eleição passa, mas quem se eleger --e tudo indica que Dilma está virtualmente eleita-- vai herdar esse clima de antipatia, de desconfiança, de divisão da sociedade.
O bordão "herança maldita" foi uma fraude criada por Lula para mobilizar as massas em torno dele e contra o antecessor. A verdadeira "herança maldita" é a que fica para o sucessor: a prática de que o o governante de plantão é dono do poder, do país e inclusive da verdade: "O Estado sou eu".
Há muita gente para dizer amém, mas há também muita gente pronta para dizer que não, não é.
PS - Por uma dessas curiosidades da vida, clonaram meu e-mail do UOL. Podem sair daí cobras e lagartos.
(*) Jornalista. É colunista da Folha, desde 1997
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