Depois de anos aturando a truculência e as grosserias do marido, a mulher, um dia, resolveu revidar. E, num rompante de coragem ou atrevimento, lascou-lhe pela cara um “piolhento”. Sabe-se lá porque aquilo pareceu um xingamento à altura ou se foi só o que ocorreu no momento de raiva. Ou, até quem sabe, nem tenha sido algo assim tão espontâneo e ela já viesse premeditando, pesando o efeito do xingamento. Como era de se esperar, o sujeito não esperava e sua reação inicial foi de enorme espanto. Como ela se atrevia? Mas, passado o impacto, o que se sucedeu foi o que seria mesmo de se esperar.
Ele despejou um caminhão de grosserias e ameaças. Mas aquele era um dia para a história.
Ela, em lugar de se amedrontar, parece que ganhou ânimo e soltou ainda mais alto um “piolhento” que penetrou nos ouvidos do troglodita como se fosse ferro em brasa.
Já era demais. E como não seria a primeira vez que ele partiria para as chamadas “vias de fato”, deu-lhe um empurrão que jogou a mulher contra um guarda-roupa velho que morava no quarto há muitos anos sem perspectiva de mudança. Não que a mulher já não tivesse pedido a troca do velho móvel, mas a recusa fazia parte da truculência.
Afinal, truculência é por período integral, não tem meio expediente. E, apesar do tranco nada inesperado, a mulher parecia estar realmente encapetada. Levantou meio cambaleante, recobrou a postura e mandou ainda mais alto: “piolhento”. O safanão veio na mesma velocidade e intensidade. Lá se foi a dona contra a parede e, a essa altura, o canastrão já se julgava vitorioso.
Qual o quê! Ainda mais zonza que antes do guarda-roupa velho, a teimosa se ergueu, limpou um fiozinho de sangue que começou a escapar do lábio superior e, desta vez em voz mais baixa, mas ultra-carregada de escárnio, repetiu como se fossem versinhos de uma cantiga de rodas: “piolhento, to, piolhento, to”. Todos os limites haviam sido ultrapassados. O macho injuriado agarrou a ultrajante pelos cabelos e a arrastou até o fundo do quintal por onde passava um rio de proporções bem avantajadas.
Era água suficiente para acabar com aquela falta de respeito.
Bem na beira do rio, sabendo exatamente o que ia acontecer, a condenada não se fez de assustada e repetiu, desta vez com uma carinha debochada a mesma trovinha: “piolhento, tô, piolhento, to, piolhento, to”.
Três vezes que era para ninguém argumentar que não ouvira direito. E lá se foi, como um saco de batatas para o fundo do rio. Nem é preciso dizer que a infeliz não sabia nadar. Afundou uma, duas, três vezes se debatendo como manda o chamado instinto de sobrevivência. E na quarta vez, já quase moribunda, olhou desafiadoramente para o brutamontes e foi afundando em caráter definitivo. Quando sua cabeça foi inteiramente submersa, vieram à tona apenas metade de dois braços enquanto as duas mãos juntavam os dois polegares um contra o outro fazendo um sinal de quem está matando um piolho. Piolhento por toda a eternidade.
Não existem piadas velhas, apenas públicos velhos. Isso talvez se deva ao fato de que o gênero humano resiste a se renovar. Essa é uma velha anedota que me vem à lembrança sempre que presenciou ou tomo conhecimento de algum ato de truculência.
E sempre convém definir “truculência”. É muito mais que a superioridade física, seja ela a de um individuo sobre o outro, seja a predominância numérica, o conhecido, “três ou quatro contra um”, ou ainda a vantagem circunstancial de uma posição hierárquica, de um cargo público ou de um poder econômico avantajado.
Qualquer forma de se impor a alguém é truculência. Mas alguém poderia perguntar: “e se essa imposição for por meio de argumentos, raciocínios com conteúdo que façam o outro se convencer das razões do primeiro?”. Nesse caso não há imposição. E isso porque, parodiando Euclides da Cunha com o seu “o sertanejo é, antes de tudo, um forte”, eu me atrevo a dizer que “o truculento é, antes de tudo, um imbecil”. Ou um idiota, se alguém preferir.
Via de regra, o truculento não admite ser contrariado, contestado, questionado e está sempre na ofensiva para fazer prevalecerem suas vontades, suas opiniões, suas ordens.
E, é claro, detendo o poder, físico, legal, institucional, econômico, sempre acabará esmagando os demais. Sua sorte, talvez, consista no fato indiscutível de que o truculento, quase que como regra, não pensa, não reflete.
Porque, se fizesse isso, ainda que em escala mínima, não teria como escapar de uma conclusão inevitável: o truculento jamais convence ninguém, jamais consegue que os demais aceitem suas atitudes, vontades, pontos de vista. Quanto mais truculento, mais as pessoas poderão se calar diante da sua truculência, mas esse cretino jamais poderá se gabar de ter convencido alguém, de ter conseguido adeptos.
Ele só juntará tementes, submissos, subjugados. Não haverá um só dos integrantes do seu séquito de cabisbaixos que terá a iniciativa de propagar qualquer coisa vinda do truculento, exceto repulsa.
Portanto, deslustrados militantes da truculência de todo gênero, nenhum de vocês jamais vencerá coisa alguma porque subjugar não é vencer. É estar por cima em caráter rigorosamente circunstancial, é só uma questão de tempo.
Na primeira virada da maré, acaba o seu reinado. Porque, no final das contas, truculentos de todas as espécies, vocês nunca deixarão de ser o que são: piolhentos.
E por toda a eternidade.
(*) Advogado , avô recente e morador em S. Bernardo do Campo (SPO). Escreve para o site O Dia Nosso De Cada Dia - http: blcon.wordpress.com
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