A cena é rápida. Rápida, mas tranqüila, sem sobressaltos nem estranhezas.
O local é um prédio pequeno, desses de dois andares, ocupado por três diferentes estabelecimentos. Um deles é uma farmácia. Ao lado, um salão de beleza. Na parte de cima, uma academia de ginástica. Os negócios, como se pode perceber, são extremamente harmônicos entre si. A pessoa pode fazer o seu exercício na academia e ganhar em saúde e bem estar. Depois de um banho relaxante, passa no salão de beleza e ajeita o que a natureza porventura não lhe tenha sido muito pródiga. E, por fim, antes de ir embora, sempre é bom conferir se não está faltando uma pomadinha para aquela dor causada pelo excesso de peso ou, até mesmo, o infalível relaxante muscular.
O personagem é uma jovem senhora, conduzindo seu veículo. Aliás, mais precisamente, procurando estacionar o seu veículo. O pivô de toda a cena é a vaga para estacionamento. Melhor dizendo, a falta de vagas. O prediozinho oferece apenas nove vagas para estacionamento dos usuários dos serviços. Como são três estabelecimentos dividindo nove vagas, a impressão, ao menos à primeira vista, é que a distribuição entre os respectivos proprietários deve ter sido bastante simples. Nove dividido por três não dá nem o problema de dízima periódica, aquele odioso incidente da matemática que leva a conta a não fechar jamais. Cada estabelecimento fica com três vagas que oferece aos seus respectivos clientes.
Chega a jovem senhora para estacionar seu veículo e vê que oito das nove vagas estão ocupadas. A vaga restante pertence à farmácia. Mas a moça vai à academia. Naquela conjectura sobre a harmonização dos estabelecimentos, até pode ser que, depois da academia e de reforçar as formas, ela fosse fazer o retoque final no instituto de beleza e comprar seu xampuzinho na farmácia. Mas, a nossa heroína parecia pretender ir apenas á academia. Aí surgiu uma nota dissonante. E a moça resolve tentar uma solução negociada.
Estaciona seu carro na vaga da farmácia e vai até o balcão: “Boa noite, moço”. “Boa noite”, responde gentilmente o balconista. “Sabe o que é, eu estou indo à academia e não tem nenhuma vaga. Eu posso usar a vaga da farmácia?”. O moço fica meio desconcertado, vacila um instante, mas responde: “Desculpe, minha senhora, mas a vaga é da farmácia.
Eu não posso deixar a senhora estacionar se a senhora vai para a academia”. A moça, então, inicia o duelo de argumentação: “Mas todo mundo faz isso, moço”. E o Moço:
É, mas todo mundo faz isso errado. Eu só tenho três vagas para a farmácia e se for ceder, os clientes da farmácia não vão ter como parar”.
Ai a moça perde completamente a paciência e lança o argumento final, incontestável, imbatível: “É isso que dá a gente querer ser honesto. Eu vim aqui, quis ser legal com você, pedi para usar a vaga e você me diz que não. Eu devia ter feito como todo mundo: parar e pronto.”
O episódio terminou com a desistência da moça que saiu bufando de raiva contra a injustiça de que tinha sido vítima. Deve ter chegado em casa e descarregado um caminhão de ofensas contra o sujeitinho intransigente que não permitiu o estacionamento. Já, se o protagonista tivesse sido algum desses sujeitões sarados que resolvem tudo na força, é bem provável que ele tivesse parado o carro na vaga da farmácia e, de quebra, lascado alguma coisa como: “quero ver quem é o macho que vai me impedir de parar aqui”. Já se se tratasse de alguém dotado do poder da carteirinha, direta ou indiretamente, ou seja, o titular ou um parente do titular, o desfecho poderia, perfeitamente, ser o já conhecido: “sabe com quem está falando?”, tão brasileiro como a jabuticaba ou a palavra “saudade”.
E, por aí afora, tudo de acordo com o que pode alcançar a imaginação ilimitada do individuo verde-amarelo. Dificil, mesmo, praticamente incogitável, impensável, é que a reação fosse um simples “está bem, você tem razão. Desculpe-me pelo incômodo”.
E ainda resta uma outra possibilidade: a de que o condutor do veículo sequer se dispusesse a pedir alguma coisa tão fora de propósito como querer parar na vaga da farmácia quando se vai à academia.
É cada vez mais peculiar a maneira pela qual se raciocina a respeito das regras, sejam elas de natureza legal, as adoradas leis, sejam “apenas” de natureza moral. O fator coletivo tem enorme importância e influência na pesagem disso tudo. Ora, se todo mundo faz...
Quando o raciocínio envereda por essa trilha, tudo parece se ajeitar, se ajustar e qualquer restinho de constrangimento parece ser sumariamente expelido sem deixar vestígios.
Cada um, por estas bandas, parece uma espécie de mini-tribunal: julga a aplicabilidade ou inaplicabilidade tanto das leis quanto das regras morais em cada situação.
É a história do “cada caso é um caso”. E, quase sempre a questão se resume à posição em que está o individuo. Mais ou menos como a relatividade do tempo. Um segundo pode ser algo imperceptível ou uma eternidade. Só depende da posição em que se está diante da porta do banheiro. Mas, seria o caso de se pensar, ainda que por uns poucos instantes, a respeito exatamente dessa questão da posição. Como seria a reação da moça se, em vez de estar querendo ir à academia, estivesse tentando comprar alguma coisa na farmácia e topasse com as três vagas ocupadas pelos adeptos da ginástica?
Pode ser até ingenuidade, mas, quem sabe chegue um dia em que, também por estas bandas do planeta-Brasil, as pessoas comecem a se dar conta que tanto se pode estar do lado de dentro ou do lado de fora do banheiro quando a porta estiver fechada. E, quando se está do lado de fora, a coisa é apertada, no sentido mais literal e preciso da palavra. Aí, a civilidade, o respeito aos princípios básicos para se viver em sociedade, vão fazer mais falta que o papel, não o papel a representar, mas, aquele outro, bem menos glamuroso, bem mais prosaico, o papel que a gente leva para o reservado
(*)Advogado , avô recente e morador em S. Bernardo do Campo (SPO). Escreve para o site O Dia Nosso De Cada Dia - http: blcon.wordpress.com
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