domingo, 30 de maio de 2010

Vai Querer?

Bellini Tavares de Lima Neto (*)

“Na prateleira está marcado R$13,10. Alguém colocou isso lá e é isso que vale. Eu só aceito outro preço se for menor que isso”. Eu já peguei a conversa nesse ponto, mas como isso aconteceu no caixa de um mini-mercadinho aqui num também míni-balneario no litoral norte de São Paulo, não é preciso ser muito perspicaz para entender o contexto inteiro. A mulher relativamente jovem, trajando uma saia jeans e uma sandália de dedos, acompanhada de mais três pessoas, estava passando suas compras no caixa e deve ter havido uma divergência entre o preço cobrado pela pessoa do caixa e o valor constante da etiqueta colada no produto. E a cliente só fez valer seu direito, consagrado, aliás, na legislação que regula as relações entre fornecedores e consumidores, o hoje tão afamado e temido Código de Defesa do Consumidor. Tudo, enfim, muito trivial.
O que chamou a minha atenção, na verdade, foi o tom de voz usado pela freguesa e a parte final do seu discurso. Ela simplesmente não foi capaz de manifestar seu direito, irrefutável, aliás, de maneira tranqüila, natural, descontraída. Em vez disso, já emprestou à própria fala uma carga de agressividade, desafiante, clara pré-disposição para o conflito.

Esse é, quase sempre, o jeito pelo qual o brasileiro procura fazer valer um direito. E isso mostra o quanto essa questão do direito está distante do cotidiano da população. Aqui no planeta-Brasil o individuo ainda trata o direito por “senhor”, com mesuras, reverências, cerimônias, tal é a sua falta de familiaridade com eles. Prevalece por aqui a cultura e a tradição do “vai querer?” Para os mais jovens, essa era uma das maneiras mais comuns de se começar uma briga de rua, Um dos valentões se levantava, muitas vezes já tirando o paletó e lançava um “vai querer?” que, traduzido em miúdos queria dizer exatamente isso: briga. O outro valentão, obviamente, ia querer caso contrário cairia na boca do povo, tradicionalmente implacável. Assim se iniciava o diálogo que prosseguiu inflamado e onde a parte superior do corpo, a cabeça, só servia para atingir ou ser atingida por sopapos. A cultura do “vai querer?” continua em vigor.

A cena do mini-mercadinho me fez me lembrar de uma outra, que presenciei num aeroporto voltando de um vôo doméstico. Concluída a aterrissagem e abertas às portas (não sem o indefectível levantar dos apressados antes da ordem da comissária de bordo), lá fomos nós em direção ao setor de bagagens, Por ali também se manifestou o refinamento social dos senhores passageiros, uns querendo passar à frente dos outros para apanhar suas malas. Aos poucos foram todos indo embora e só ficaram dois: eu e um senhor de origem oriental, já entrado em anos. Fomos os dois contemplados. Nossas malas não estavam na esteira. E lá fomos nós em busca do balcão da companhia aérea perguntar sobre elas. O funcionário da empresa, entre expedito e desinteressado, tratou de nos despachar rapidamente, coisa que deveria ter sido feita com as nossas malas e não conosco. O moço foi logo avisando que as malas não tinham chegado e que chegaria só à tarde. Nós, então, que voltássemos ao aeroporto na parte da tarde ou no dia seguinte para apanhá-las. Eu não fiquei muito contente, mas, nascido e criado por estas bandas, já devidamente contaminado pelo estilo verde-amarelo de pensar, já comecei a me dirigir à saída do aeroporto. No entanto, ainda deu tempo de ouvir o senhor japonês, num português claudicante e com muita dificuldade, mas sem a mais perceptível alteração no tom de voz, dizer ao solerte funcionário: “mas, esse é seu pobrema, não meu pobrema”.
E claro que de nada adiantou aquilo, mas eu tratei de sair ainda mais depressa para que ninguém visse a minha cara vermelha de vergonha.

Talvez seja em detalhes como esse que resida à diferença entre ser cidadão e simples habitante. Uma cidadã teria apenas informado à moça do caixa do mini-mercadinho que o preço válido era o que constava da etiqueta e não o que talvez estivesse indicado em alguma lista interna. E a moça do caixa, outra cidadã, teria compreendido isso imediatamente, agradecido pela informação e corrigido o equívoco. Ah, e a titular do direito provavelmente também não coroaria o incidente com a pérola que veio em seguida: “só aceito se o preço for menor”.
Menores ainda somos nós, não é não?

(*) Advogado, agora avô e morador em São Bernardo do Campo em São Paulo. Escreve para o site O Dia Nosso De Cada Dia - http://blcon.wordpress.com/

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