Bellini Tavares de Lima Neto (*)
Há pouco mais de vinte anos eu estava com um dos meus filhos trafegando por uma rua qualquer da cidade quando a criança esboçou um gesto de atirar um papel pela janela do automóvel. Antes que o ato se consumasse eu expliquei que não se devia fazer aquilo. E a criança, de imediato, me fez a inevitável pergunta, o infalível “por que”. Aí se seguiu uma tentativa de explicação sobre o fato de que aquilo sujaria as ruas e poderia causar entupimentos nas galerias subterrâneas que poderiam causar enchentes quando chovesse. Além do que, a cidade acabava ficando muito suja, o que não tinha nada de agradável. Não conheço pai que, depois de uma lição de civilidade como essa, não se sinta um misto de herói, educador, pedagogo e o que mais couber. Mas, o pior estava por vir. Depois do indefectível “por que”, veio a inevitável ponderação, filha legítima daquela lógica infantil que é de arrasar. “Mas, se todo mundo joga”. O melhor que eu consegui foi responder que, apesar de quase todo mundo jogar sujeiras nas ruas, se algumas pessoas não fizessem isso, no mínimo seria um pouco menos de sujeira, uma enchente ligeiramente menor e alguma coisa além, sempre mais ou menos dentro dessa linha que, imagino, não deve ter feito muito sentido e nem conseguido convencer ninguém daquela idade.
Reza o ditado que contra fatos não há argumentos. Não concordo muito com isso. Afinal, os fatos nem sempre se mostram inteiramente fiéis e muito frequentemente são distorcidos. Não é à toa que se costuma afirmar que mais importante que o fato, é a versão. Por isso, é possível, sim, construir argumentos contra esses fatos capengas, que já nascem viciados e sem credulidade. Mas, não há como negar que é uma missão árdua, tarefa quase impossível. Convencer uma criança que não deve fazer o que ela vê quase todo mundo fazendo impunemente e sem o menor constrangimento é um enorme desafio. Na maior parte das vezes pais, mães, professores, os responsáveis por educar, acabam se sentindo impotentes, desarmados, inteiramente a mercê dos tais fatos contra os quais quase não há argumentos. E uma boa parte se cansa, desiste, entrega os pontos e deixa o barco correr, chegando à conclusão que aquele palavrório todo sobre ver triunfar as nulidades ficou muito bem na célebre oração “ruibarbosiana”, mas não tem a menor serventia na fila do caixa do supermercado. Portanto, em Roma, como os romanos, ficando claro que ninguém, aqui, está querendo imputar qualquer responsabilidade ou tecer críticas aos herdeiros de Rômulo e Remo.
Se educar crianças é cada vez mais difícil, o que dizer de quando elas deixam de ser crianças e se tornam adolescentes. Sim, porque, até uma idadezinha mais tenra ainda se consegue alguma coisa, por conta da natural intimidação que os adultos, voluntariamente ou não, representam para as crianças. Mas, mal começa a adolescência, aí tudo já passa a se complicar de vez. De um lado, aquela rebeldia própria de quem começa a se descobrir e se lançar no mundo. Do outro, o despudor, a falta de senso ético, o cinismo, a desfaçatez em verdadeiro desfile de gala diante dos olhos de todos, jovens, adultos, idosos, homens, mulheres e adjacências. E, para coroar o desserviço, nenhuma punição, nenhuma indignação, nenhum prejuízo, nenhum constrangimento. Todo mundo se dá bem, sai por cima, posa de cidadão respeitável. Aquele vermelhão que incendiava a cara de quem fosse apanhado em pecado deve ter-se mudado para outra galáxia. Em seu lugar ficaram as mais mirabolantes justificativas para a patranha, as explicações mais cínicas que se possa imaginar, as estratégias mais grosseiras e acintosas para o abafamento de escândalos. E caso encerrado. Vamos à próxima. Aí vem um pai ou uma mãe com cara de sério pregar um sermão sonífero falando sobre princípios, respeito à verdade, não subtrair o que não nos pertence, honrar compromissos, não ser condescendente nem aplaudir o malfeito e que, no final das contas, ser honesto compensa e vale a pena. E, quase sempre, esses oradores fora de moda dão um duro danado para sobreviver e proporcionar um minguado padrão de vida aos familiares. Enquanto a safadeza se regala no carro importado, na roupa de grife, na primeira classe da viagem pelo mundo. Convenhamos, o duelo é desigual, muito desigual.
Nos momentos de maior indignação os ingênuos se deixam levar pelo impulso sem cabimento de tentar entender como é que essa gente que hoje ocupa um espaço de destaque na condução da vida nacional não tem um mínimo de pejo em relação ao que fazem e dizem. E tampouco sentem um mínimo de remorso pelo que estão legando à sociedade, para onde estão levando os destinos e o futuro do país. Pura ingenuidade. Se fosse capaz de alguma nobreza de sentimento não faria o que faz. E, ainda que fizesse, se fosse apanhada, não apresentaria justificativas do gênero “trata-se de uma conspiração”, “tudo isso é fruto de uma disputa política”, “fulano tem uma história e não pode ser tratado como alguém comum”. Enquanto isso, sobra só essa crença meio desvairada, esse quixotismo de continuar dizendo aos nossos filhos que a honestidade compensa, sim, que vale a pena andar no caminho da limpeza e não se contaminar com esse grande esgoto a céu aberto com que a terrinha vai se acostumando. Impressionante como o cheiro do lixo entorpece.
Pode não valer grande coisa, mas meus filhos não jogam nem nunca jogaram papel na rua.
(*) Advogado e morador em São Bernardo do Campo em São Paulo. Escreve para o site
O Dia Nosso De Cada Dia - http://blcon.wordpress.com/
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