sábado, 9 de junho de 2012

A última crônica de Ivan Lessa

Ivan Lessa (*)

Orlando Porto. Taí um nome como outro qualquer. Podia ser corretor de imóveis, deputado, ministro, farmacêutico. Mas não é. Trata-se de um anagrama de um escritor francês - e ator e ilustrador bom e autor e figurinha difícil francesa e aquilo que se poderia chamar de "frasista". 

Feio como um demônio, no meio da década de 50 cansei de dar com ele dando comigo lá pelo Boulevard St. Germain, cheretando o Flore, o Lipp, fazia uma cara que quem ia dizer algo importante e logo sumia na companhia do Jean-Pierre Léaud, aquele maluquinho dos filmes autobiográficos do Truffaut. Dupla estranha. 

Os desenhos do -esse seu nome, artístico ou de batismo, Roland Topor- eram bacaninhas. Mas sempre foi Orlando Porto para mim. Fez cinema também. O Inquilino do Polanski, o Reinfeld de Nosferatu, do Werner Herzog. 

Até que bateu o que ocultava seus pés: umas botas estranhas como ele. De vez em quando, numa revista esotérica, dou com ele. Ei-lo numa em inglês com "100 boas frases para eu matar agorinha mesmo". 

Se chegou ao fim, e chegou, foi pelo cachê. Meros galicismos literários. 
E aí trago à cena, mais uma vez, porque cismei, mestre Millôr Fernandes. 

Esse era profissional. Nada a ver com "frasista". Trabalhava com a enxada dura da língua. Nunca para dar a cara no Flore, principalmente com Topor e Léaud. 

 Reli umas 100 frases do Orlando, ou Topor, e não resisti à tentação de, em algumas delas dar-lhes uma ginga por cima e outra por baixo, à maneira do frescobol querido do mestre, só para exercitar os músculos muito fora de forma. 

Cem razões: Faço por bem menos, mas mais Copacabana e Leblon. 
Algumas raquetadas minhas em homenagem ao mestre cuja falta continuo sentindo: - 

Melhor maneira de verificar, antes, se já não estou morto. 
- Mas não se mata cavalos e malfeitores? 
- Pelo menos eu driblaria o câncer. 
- Milênio algum jamais me assustará. 
- Apanhei-te horóscopo! Pura enganação! 
- Levo comigo a reputação de meu terapeuta. 
- Pronto, agora não voto mais mesmo! Chegou! 
- Aí está: uma cura definitiva para a calvície. 
- Enfim cavaleiro do reino de sei lá o quê. 
- A vida está pelos olhos da cara. Pra morte eles fazem um precinho especial, combinado? - Enfim, ano bissexto nunca mais. Esses ficam para o Jaguar. O resto pro Ziraldo. 
- Ao menos é uma boca de menos a sustentar. 
- Só quero ver quanta gente vai sincera no meu funeral. 
- Pronto! Inaugurei estilo novo: Arte Morta. 
- Sabe que minha vida não daria um filme. O livro eu já escrevi. Deixem o desgraçado em paz, peço-lhes. 
- Custou, mas estou acima de qualquer lei que vocês bolarem aí. 
- Levou tempo, mas cortei enfim meu cordão umbilical.
- Roncar, nunca mais. Nem eu nem ninguém ao meu lado. 
- Que desperdício nunca ter fumado em minha vida! 
- Consegui preservar o mistério sempre giarando em meu torno.
- Maioria silenciosa? Essa agora é comigo.
- Na verdade, nunca me senti à vontade nessa posição incômoda de cidadão do mundo. 
- Ei, juventude, pode vir que pelo menos uma vaga esrá aberta. 
- Emagrecer é isso aqui.
- Agora é conferir se, do outro lado, sobraram tantas virgens assim. 

 E assim, cada vez que um "frasista" passar por perto de mim, leve uma nossa: minha e de Millôr. Dois contra um a gente ganha mole.

(*) Jornalista e escritor que morreu hoje aos 77 anos em Londres . Foi editor e um dos principais colaboradores do jornal O Pasquim, onde assinava as seções " Gip-Gip-Nheco-Nheco". Escreveu 3 livros "Garotos da Fuzarca"  (1986), " Ivan vê o Mundo " (1999) " O Luar e a Rainha" (crônicas em 2005) . Morava em Londres desde 1978 e escrevia crônicas três vezes por semana para a BBC Brasil

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