Gaudêncio Torquato (*) para O Estado de S.Paulo
Se todos os brasileiros são iguais perante a lei, nos termos do artigo 5.º da Constituição federal, por que alguns são tratados de maneira diferente? Se os administradores públicos, de qualquer dos Poderes e em todos os níveis de governo, devem submeter-se ao princípio da publicidade, nos termos do artigo 37 da mesma Lei Maior, por que alguns se afastam do critério? Se o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, ainda de acordo com a Carta Magna, agora pelo parágrafo único do artigo 1.º, por que uns prestam contas de seu comportamento a ele (povo) e outros não? São algumas das interrogações que podem balizar a decisão dos senadores sobre a extinção ou limitação do voto secreto, a ser objeto de apreciação pelo plenário da Casa nos próximos dias. A indicação de que o Senado vai avançar nessa matéria, abrindo o voto para cassações de mandatos parlamentares, se insere no rol de esforços do Parlamento para aprimorar os estatutos do nosso Estado Democrático de Direito.
O território do voto secreto é povoado de buracos. A começar pelo tratamento diferenciado que se presta aos corpos dirigentes de nossa democracia representativa. Vejamos. Na esfera do Poder Executivo, acusações contra o presidente da República passam pelo crivo de dois terços da Câmara dos Deputados (artigo 86 da Constituição) e os crimes de responsabilidade são objeto de definição em lei especial, que estabelece as normas do processo e julgamento (parágrafo único do artigo 85). Não se explicita, nessa esfera, o sistema de voto - aberto ou secreto -, entrando a questão no compartimento do "silêncio eloquente", conforme assinala o constitucionalista Adilson de Abreu Dallari, que ainda pinça a lembrança: "Quando o voto deve ser secreto, a Constituição assim o estipula expressamente". Como se viu no impeachment do presidente Fernando Collor, o voto foi nominal, ou seja, aberto, atendendo à disposição da lei em vigor, a de n.º 1.070.
50. Em defesa do voto aberto saliente-se também o já citado princípio constitucional da publicidade, cuja aplicação vale para os integrantes de todos os Poderes. Por isso é de estranhar que os quadros legislativos recebam tratamento diferenciado em situações e circunstâncias que constituem interesse da coletividade.
No caso do Poder Legislativo, é oportuno frisar que os representantes contam com a prerrogativa - legítima e democrática - da inviolabilidade por opiniões, palavras e votos. Trata-se de requisito fundamental para a independência do exercício funcional. Seria trágico para a democracia se o tacão da censura submetesse o corpo parlamentar a adotar a cartilha de pensamento do Poder Executivo ou de grupos de interesse. Dito isto, não há como deixar de reconhecer a forte legitimidade do voto secreto no Parlamento. Ampara-se, portanto, no escopo da salvaguarda do bem comum, da defesa da vontade popular, da garantia de preceitos constitucionais, enfim, da preservação dos valores democráticos. Não é o caso do julgamento de chefes de Executivo, conforme já se mostrou, mas é, seguramente, a situação que abarca a indicação de membros do Supremo Tribunal Federal, cuja aprovação depende do corpo parlamentar. Parlamentares que, por acaso, desaprovem nomes de magistrados encaminhados pelo presidente da República para compor a Corte poderão eventualmente ser julgados pelos próprios. Logo, o voto fechado tem o condão de escudar a identidade parlamentar, evitando dissabores futuros e indesejáveis climas de suspeita.
O voto secreto faz-se necessário, ainda, na apreciação e no julgamento dos vetos presidenciais, levando em conta o extraordinário poder do nosso sistema presidencialista. Não convém escancarar a votação para julgar decisões emanadas do Palácio do Planalto, principalmente quando chegam ao Parlamento na forma de veto a projetos de lei. O Congresso exerce o poder de analisar vetos presidenciais, decidindo com o voto secreto por sua manutenção ou derrubada. Imagine-se a contrariedade de um presidente ao se ver obrigado a publicar no Diário Oficial uma lei sem os vetos que a ela fez. Chegamos, agora, ao escrutínio secreto para julgamento dos pares, conforme estabelece o parágrafo 2.º do artigo 55. A perda de mandato do deputado e do senador decorrente de proibições arroladas no artigo 54 da Constituição, de procedimentos incompatíveis com o decoro parlamentar e de condenação criminal em sentença transitada em julgado, se dá por votação secreta e com o quórum de maioria absoluta. A justificativa para o sigilo é a teia do constrangimento que o voto aberto proporcionaria. Parlamentares poderiam sentir-se constrangidos em condenar colegas com quem mantêm relação, se não de amizade, ao menos de respeito. Os desafetos, ao que se constata, constituem a exceção, não a regra.
Neste ponto convém ponderar que o detentor de mandato exerce a indeclinável obrigação de prestar contas de atos e atitudes aos eleitores. Há de se submeter ao controle de suas decisões. A partir do momento em que passa a exercer a representação conferida pelo povo, o parlamentar se obriga a compartilhar a trajetória pública com a sociedade. Esse é o ditame do exercício do poder na vida republicana. O chamado "voto corporativo", que se desenvolve em função do vínculo entre iguais que trabalham sob a mesma cúpula, é figura insustentável diante do império da ética e da moral, cujos domínios se expandem nos múltiplos espaços da sociedade organizada. Não há mais sentido em guardar segredo no julgamento de parlamentares. A oxigenação dos pulmões sociais está a exigir assepsia, independência, justiça. A soberania popular ordena que a representação política se paute por transparência de atitudes e decisões. Onde o poder é oculto, já dizia Bobbio, tende a ser oculto o contrapoder, o poder invisível. Nas ditaduras floresce a cultura do sigilo. O Parlamento deve ser o primeiro Poder a implantar nas democracias o governo do poder visível.
(*) Jornalista, Professor Titular da USP, é Consultor Político de Comunicação
Twitter: @GAUDTORQUATO
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