Extraido do Blog O Estado do Tapajós On Line (blogdoestado.blogspot.com/)
Lúcio Flávio Pinto (*)
O que vai acontecer ao Pará?
Esta é uma pergunta que deixou de ser retórica. O Estado se encontra em questionamento, a começar pela sua integridade física. O momento seria para reflexão profunda e ação conseqüente. Mas falta liderança para essa missão.
O Pará está em transição, em trânsito e em transe.
A começar por sua própria base territorial. Na sua configuração atual, se fosse um país, o Pará seria o 25º mais extenso do mundo. No continente latino-americano, só estaria abaixo do próprio Brasil e da Argentina, superando o país seguinte na lista, a Colômbia.
O paralelo não deixa de ter algum significado. A principal marca colombiana nos últimos 60 anos tem sido a violência. O Pará é um dos Estados mais violentos do Brasil, a violência no amplo espectro da sua expressão: desde a morte de pessoas, incluindo assassinatos por encomenda (e a preço vil, se é que se pode estabelecer valores para a eliminação da vida), até a destruição da natureza, às vezes por motivações torpes e primárias.
Não por coincidência, no início da temporada de verão, o Pará volta à sua sombria liderança em destruição da floresta e em execuções de pessoas consideradas indesejáveis ou hostis aos interesses dominantes. Uma coisa tem muito a ver com a outra: o desmatamento é o ritual da extração da riqueza fácil e valorizada, a madeira, que encomenda os assassinatos dos que se opõem a essa prática, ou concorrem com ela.
Por tamanho físico, o Pará, se fosse um país, estaria logo abaixo da África do Sul, no 25º lugar do ranking. Essa é outra comparação que lança luzes sobre a situação atual do Estado.
Como a nação africana, o Pará tem um subsolo extremamente rico em minérios. Embora a pesquisa geológica sistemática abarque apenas uma pequena fração dos seus 1,2 milhão de quilômetros quadrados, o Pará já é a unidade federativa que mais exporta minério de ferro do mundo.
É também o maior produtor mundial de alumina, o 3º maior produtor internacional de bauxita, significativo produtor de caulim (o de melhor qualidade do mercado para papéis especiais) e com crescente participação em cobre e níquel. É uma pauta de exportação mineral mais diversificada do que a da África do Sul, cuja atividade econômica é muito mais antiga do que a do Pará.
A África do Sul ainda tenta resolver seu principal problema, o racial, herança dos longos anos de política segregacionista dos colonizadores brancos. No Pará a diferença de raça não tem a mesma gravidade, embora haja uma questão de raça (ou de etnia, melhor dizendo) a desafiar a capacidade de tolerância, compreensão e absorção dos grupos sociais dominantes.
Os índios são das “menores minorias” dentre as principais no Estado, mas pela densidade da sua cultura, da sua ancestralidade, da sua existência territorializada e da sua anterioridade, impõem – e exigem – uma política específica para eles por parte do poder público, que dispõe de meios para impor essa atitude a toda a sociedade envolvente.
Há, contudo, outras minorias – mais expressivas no aspecto quantitativo e conjuntural – que, por sua condição, também estão a cobrar atenção e providências das autoridades. No entanto, conforme constatam representantes do poder público, quando se deslocam da sede da burocracia estatal para inspeções meteóricas ao hinterland (cada vez mais reduzido à condição de sertão), a principal ausência nesses grotões é a do Estado, tanto o ente federativo quanto a ameba nada metafísica do governo central, a União.
A pedra de toque da vida nessas porteiras agrestes disfarçadas de cidades (muitas vezes meros acampamentos nucleados para as investidas ao interior) é o conflito. Toda a estrutura social está enxertada e infiltrada por conflitos – de todas as naturezas e de variadas motivações. O combustível do cotidiano é o caos, às vezes organizado, outras vezes anárquico, incontrolável.
Em 1975, os tecnocratas brasilienses, avalizados pelas espadas dos comandantes militares que a eles se juntaram, previram que teria que ser assim mesmo. Não seria possível de outra forma desenvolver aceleradamente a Amazônia, como os feiticeiros do “milagre econômico” dos anos de 1970 pretendiam, para criar o Brasil Grande (com muitas alquimias, mas sem poupança real, como até hoje).
Para fazê-la crescer mais do que o país, como queria o II PDA (Plano de Desenvolvimento da Amazônia) para o qüinqüênio 1975/79, era preciso conviver com os desequilíbrios. O crescimento veloz, que transformaria a região numa usina de divisas para o país, através da exportação maciça, provocaria esses desajustes por força do seu próprio mecanismo de ação.
Ciente desse efeito negativo, o feitiço posto no mesmo frasco da poção mágica, através da consubstanciação da sangria do capital estatal (destinado, sobretudo, para a “burguesia nacional”) e o derrame de capital estrangeiro, o Estado estaria sempre presente nas lonjuras do sertão, acompanhando cada S/A, cada João da Silva, cada assentamento, cada mineradora, ao lado da rodovia ou da ferrovia, da nova cidade ou da hidrelétrica. Assim, transformando em planejamento centralizado e em poder de polícia a sua jurisdição, o poder central corrigiria os desequilíbrios decorrentes do “modelo de ocupação”, que privilegiava uns poucos e deserdava a tantos.
Mas, atenção: como no filme hollywoodiano, o piloto sumiu. O desequilíbrio continuou a existir, se reproduzindo e se alterando, mas o agente da correção, com os poderes da sagrada delegação dos cidadãos, ficou acantonado na sede burocrática. Enquanto isso, os convidados do banquete e os recrutados para a aventura fluíam para os lugares onde havia riquezas naturais em condições de serem transformadas em mercadorias. A migração se intensificou, o espaço foi sendo ocupado, os contrastes se alargaram, os conflitos se agigantaram e os desequilíbrios escaparam a qualquer controle.
Podendo ser o 25º maior país do mundo em território, o Pará seria o 97º em população. Na visão dos sacerdotes da ocupação como meio de “integrar para não entregar”, que são os geopolíticos de gabinete (ou de comando), ótimo: há ainda terras a desbravar (que cabe ao bandido amansar, enquanto não chega o mocinho, se mocinho ainda há na res publica).
A população ainda é insuficiente para garantir a segurança nacional contra cobiças internacionais – antigas ou hodiernas, consumadas ou especuladas. Se fosse país, o Pará teria a 97ª maior população do mundo, um contraste com a sua posição territorial, como 25º em extensão. Que prossiga, pois, a máquina de desmatamento e de transformação do reino da natureza em condição humana (isto é, sem a mata selvagem e seus apêndices, inclusive humanos).
Se o poder público é o grande ausente das frentes pioneiras, que se multipliquem suas representações, fracionando o território e reproduzindo o aparato burocrático. É o grande mote das bandeiras de emancipação dos dois novos Estados, de Carajás e do Tapajós.
Essa determinação categórica possui, entretanto, um mal de origem: o surgimento de três unidades federativas onde atualmente há apenas uma deverá reproduzir os problemas e queixas, ao invés de resolvê-las. O que acarreta as distorções não é o excesso de terra a ser jurisdicionada pelo governo local ou a insuficiência de gente para melhorar a relação habitante/quilômetro quadrado, que asseguraria a soberania nacional sobre a fronteira, mas o “modelo” de ocupação, embora de pé quebrado.
É incontestável que esse modelo proporcionou crescimento econômico acelerado. As exportações do Pará se multiplicaram 30 vezes desde que o II PDA entrou em vigência. Hoje o Pará é o 2º Estado que mais divisas proporciona ao Brasil, além de ser o 6º maior exportador bruto. É o 5º maior produtor e o 3º maior exportador de energia do país.
Mas os indicadores sociais são africanos, como já se registrou inúmeras vezes no passado e o porta-voz da elite belenense, O Liberal, finalmente alardeou na capa da sua última edição dominical. Não por acaso, quando tudo faz e a tudo recorre para impedir o político mais influente do Estado no além-divisas, Jader Barbalho, de assumir sua cadeira de senador.
Em dezenas de editoriais e notas na sua coluna de maior prestígio, o Repórter 70, o jornal dos Maioranas repete, há meses, que a carreira de Jader como ladrão do dinheiro público tem 25 anos, desde que ele teria desviado recursos do Banco do Estado para sua conta particular, durante o exercício do primeiro mandato como governador. Nesse período ele acumulou dois mandatos de governador, um de senador e um de deputado federal.
Nunca nenhum político paraense foi mais combatido pela grande imprensa nacional, que o escolheu como símbolo do enriquecimento ilícito, na sucessão dos paulistas Ademar Barros e Paulo Maluf. Ainda assim, Jader foi o segundo mais votado na eleição para o Senado no ano passado e continua a ser a estrela mais brilhante nacionalmente na opaca constelação de representantes do povo paraense. Para desespero dos Maioranas, suas empresas de comunicação resistiram à concorrência do adversário e, no segmento de impressos, já suplantou o grupo Liberal.
A reação dos Maioranas a esse fato surpreendente consiste em alegar que tal façanha só foi possível pela utilização de dinheiro público, argumento que tem seus fundamentos e é histórico (vários jornais se valeram indevidamente, ao longo do tempo, dos estoques de papel da Imprensa Oficial do Estado). Mas se a tentativa dos irmãos Ronaldo e Romulo Jr., de desenvolver carreira política, tivesse sido bem sucedida, eles não teriam feito o mesmo?
A julgar pelo uso que deram ao dinheiro da Sudam, a especulação pode ser considerada positiva. Os dois dirigentes das Organizações Romulo Maiorana não fraudaram apenas sua contrapartida de capital próprio aos recursos dos incentivos fiscais, objeto da ação penal proposta pelo Ministério Público Federal, em vias de sentença na 4ª vara da justiça federal, em Belém.
Eles também recorreram a notas fiscais frias para atestar a existência de uma obra física que nunca construíram e que teria sido posta abaixo por um estranho vendaval, que só atingiu o galpão de sua fábrica, no distrito industrial de Ananindeua, crime que não constou da denúncia do MPF.
O maior ou menor dano ao erário pelas elites paraenses depende, portanto, do grau de poder ao qual têm acesso, o que inclui, como componente de grande expressão, o controle de meios de comunicação de massa. Graças a jornais, emissoras de rádio e televisão, e outras mídias, os poderosos da terra induzem e manipulam a opinião pública conforme seus interesses, dentre os quais estão o apetite pela rápida riqueza e a imobilização (ou destruição) das alternativas de representação da sociedade.
O exercício pleno desse poder criou um mundo fechado e fantasioso pelo qual circulam esses atores privilegiados. Uma dessas gaiolas das loucas, para usar a incisiva expressão teatral, era a Assembléia Legislativa do Estado. A presunção de impunidade levou ao cometimento de irregularidades e ilegalidades que beiram o padrão dos ladrões de galinha. Se não os superam.
Todos os tipos penais foram caracterizados na apuração dos fatos delituosos cometidos por funcionários (reais ou fantasmas, efetivos ou agregados) e parlamentares. A sociedade se cansou de se escandalizar com cada nova revelação, mas é de se pôr em dúvida a crença de muitos de que tudo continuará como estava: impune.
A credibilidade das lideranças locais foi seriamente atingida pela sucessão de querelas e conflitos. A intensa troca de acusações, caracterizada pela falta de argumentos de defesa e de sobra de denúncias sem resposta, está deixando o Pará sem figuras de referência. Tem-se generalizado a descrença em relação às causas apresentadas pelos líderes, presos aos seus esquemas e interesses privados ou corporativos, incapazes de levar a sério e defender causas coletivas, de interesses difusos na sociedade.
Vítima da União durante o regime militar, que lhe expropriou literalmente manu militari seu patrimônio fundiário, o Pará não consegue reaver sequer as áreas que lhe deveriam ser devolvidas por imposição constitucional clara e categórica, como as ilhas e as faixas de terras litorâneas. O governo de Ana Júlia Carepa abriu mão desse direito porque em Brasília estava o companheiro Lula.
Acima da causa do Estado, o PT, um verdadeiro partido orgânico (e também fisiológico), coloca o interesse partidário. Por isso, a governadora petista se submeteu à ordem nacional petista. O PT queria regularizar a situação dos varzeiros, de quilombolas e outros clientes agrários, à custa da omissão (ou da conivência) do Estado e de papéis concedidos que, no apurar das contas, não terão o valor que lhe atribuem, de propriedade.
Mas e agora: nada mudou? Não é apenas porque agora o governador é tucano que a submissão deve ser substituída por uma atitude decidida: é porque a causa é inteiramente justa, legal, amparada pelo direito. Velhos e superados conceitos sobre a maré de determinado ano do século XIX e incrustações arcaicas não resistirão ao menor questionamento jurídico, pondo fim a essa anomalia herdada do centralismo hegemônico, que apenas muda de banda (ora de direita, ora de esquerda).
O Pará precisa de um perfil exato, de uma imagem verdadeira, capaz de retratar sua incrível diversidade e complexidade, a realidade que desafia os conceitos e as interpretações. É verdade que, nos fronts abertos onde há riqueza natural a explorar (e exportar), o mais fraco é esmagado pelo mais forte, o que tem dinheiro prevalece sobre o pobre.
Não há novidade nesse enredo universal, com tanto tempo de vigência. A novidade, em muitas situações e locais, é que não há mocinhos de um lado e bandidos do outro lado. O “modelo de ocupação”, causador de desequilíbrios, que resultam no caos, embaralhou os papéis e as funções, liberou as porteiras para a corrida sem regras ao lucro, ao salário, ao dinheiro.
Na sofreguidão de produzir mercadorias e mandá-las para consumidores externos (ao Estado e ao país), cada um quer aproveitar sua oportunidade conforme ela se apresenta. O que interessa é que o maior trem de carga do mundo continue a fazer suas nove viagens diárias pela ferrovia de Carajás, em fase final de duplicação, para 230 milhões de toneladas, até o porto no litoral do Maranhão, onde começarão a atracar os maiores cargueiros de minérios do mundo, da Vale, para levar a carga até o longínquo Oriente, de onde regressam com manufaturas, abrindo nessa relação um déficit que foi de 70 bilhões de dólares no ano passado e deverá chegar a US$ 100 bilhões neste ano.
As almas caridosas e solidárias com a Amazônia do outro lado da fronteira vêem no cenário tropical a luta entre Deus e o Diabo, o Bem e o Mal, o primitivo puro e o moderno corruptor. Com essa visão, projeta à condição de mártires e heróis pessoas de carne, osso e interesses, como seres incorpóreos que fossem, legendas diáfanas que não resistem a uma investigação dos fatos.
Se o paraíso está perdido, a pureza se esfumaçou de há muito. Para tanto, serve de prova a rebelião de peões na hidrelétrica de Jirau, no rio Madeira, em Rondônia. Fronteira do caos, a Amazônia tornou-se também cadinho para a cultura do crime, tanto maior quanto mais alto está o cidadão na pirâmide social.
É a cultura da violência, que tornou a vida uma irrisão e se sofisticou ao se institucionalizar e adquirir a forma asséptica do crime de colarinho branco, cuja alvura depende da qualidade do advogado, do acusador e do julgador. Este conjunto, que podia funcionar como ponto de equilíbrio nas relações desiguais e árbitro dos conflitos, se tem deteriorado na perda da autonomia e no predomínio do espírito de corpo.
Advogados conseguem enfiar seus clientes culpados pelas lacunas da lei na busca pela impunidade com a conivência do fiscal da lei, que se cala, ou do julgador, que associa ao empreendimento. Por desespero ou dolo. Quando surge o momento de desfazer a cadeia ilícita e punir os que a formaram, o espírito de corpo se faz sentir, soprando proteção sobre os transgressores, mesmo quando há provas contundentes contra eles e até já se encontravam presos.
Os mecanismos de representação poderiam funcionar em defesa do Estado, não como uma mera atitude corporativa ou tradicional, mas para que os benefícios se estendam aos seus habitantes, e não apenas aos “ocupantes da fronteira” ou colonizadores, mas eles estão profundamente corroídos. É o cada um por si, salve-se quem puder e ganhe quem chegar primeiro ou for mais esperto.
A falta de uma ética pública responde pelas iniqüidades que se incorporaram ao cotidiano da capital, tornando dolorosa e selvagem a vida dos seus moradores. A população está entregue à sanha do desrespeito às normas da convivência em comum e do bem estar geral. Já a ausência de instituições comprometidas em conhecer e entender a realidade priva a capital do exercício do comando sobre o Estado, ameaçado de sofrer um golpe certeiro a pretexto de corrigir seus erros e deficiências.
A condição colonial, que impede o autoconhecimento e a autodeterminação, se faz sentir como nunca. Parece que vai prevalecer no momento mais decisivo da história do Pará.
Contra o Estado.
(*) Jornalista, Sociólogo, Escritor e Professor Universitário
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