Alon Feuerwerker (*)
Dilma herdou um governo orçamentariamente distribuído, no qual os muitos pilares de apoio mantinham cada um a capacidade de alavancar recursos para a reprodução do próprio poder. Agora vem a recentralização
Olhar um governo exige técnicas de diagnóstico. Há situações em que você pode enxergar diretamente o objeto. Se aparece um documento, uma gravação, algo dotado de materialidade.
E há situações em que você precisa deduzir.
A dedução é útil quando a matéria prima são conversas. Você nunca deve acreditar em tudo que dizem. Mas ouvir sempre é bom. Tampouco deve descartar nada. Se alguém lhe mente, a mentira embute pelo menos uma verdade: o fato de alguém ter mentido para você.
Procure a razão pela qual o sujeito decidiu mentir, talvez haja aí algo útil.
Luiz Inácio Lula da Silva falava muito em público. O roteiro do governo dele podia ser alinhavado a partir da produção verbal do presidente. Sabia-se a cada momento quais eram os propósitos, quem eram os inimigos, onde estavam as barreiras a suplantar.
Foi um período repleto de comunicação. O sujeito podia gostar ou não do que Lula dizia, ou de como dizia, podia concordar ou não com ele, mas ninguém reclamava da falta de sinais orientadores. Todos conheciam o sentido do fluxo e do contrafluxo.
Já Dilma Rousseff fala economicamente, e tampouco se conhecem porta-vozes. Daí que olhar o governo dela exiga outras técnicas propedêuticas. A energia maior será necessariamente dispendida em procedimentos interpretativos a partir de sinais indiretos, fragmentados, contraditórios.
A crise corrente no Ministério dos Transportes, por exemplo, pede um exercício de interpretação complexo. A etapa pública da crise foi desencadeada pelo próprio governo, na reunião de enquadramento entre os palacianos e a turma da pasta.
Reunião que depois foi objeto de apuração jornalística e veio a público.
E o governo agiu -e vem agindo- numa rapidez impecável, passando o bisturi com a perícia de quem conhece em detalhe os tecidos a remover. Há os constrangimentos da política, mas eles não têm sido definitivos. A presidente não parece disposta a deixar a onda passar.
Surfa nela com gosto.
O movimento dela é duplo. Procura naturalmente remover os focos de eventuais problemas administrativos, que sempre tenderão a tomar dimensão política, mas há também uma operação política propriamente dita a rodar.
Dilma busca reorganizar o governo com parâmetros menos dispersos, mais centralizados. Busca concentrar poder.
O que implicará menos autonomia ainda para os políticos e movimentos políticos instalados nos ministérios e demais órgãos dotados de capacidade de investimento. Manterão a capacidade, mas perderão autonomia.
Aqui, o delicado processo de centralizar e descentralizar é quase uma reprodução da sístole e da diástole cardíacas. Assim bate o coração de qualquer governo. Centraliza-se e divide-se o poder, conforme a força e a necessidade.
O mandato de Lula começou bem sistólico. Se havia alguma distribuição de poder, era entre as correntes do PT. Para os demais, postos formais e a obrigação de tomar a bêncão a cada passo. O símbolo dessa lógica foi o então presidente ter desfeito a entrada do PMDB no governo, desfazendo o acordo costurado por José Dirceu.
E a coisa funcionou no primeiro ano, com o Planalto vencendo votações decisivas no Congresso Nacional, em assuntos delicados como a previdência social e os impostos.
Mas a concentração de poder também significou concentrar potenciais dores de cabeça. Quando veio a crise, ela estourou bem no coração do governo.
Como resultado, e para sobreviver, Lula enveredou pela longa diástole que o levaria a concluir o primeiro mandato, a reeleger-se e a eleger a sucessora.
Que por sua vez herdou um governo orçamentariamente distribuído, no qual os muitos pilares de apoio mantinham cada um a capacidade de alavancar recursos para a reprodução do próprio poder.
Daí para o descontrole é um passo. Eis por que Dilma produz agora a nova sístole. Uma recentralização.
Vai funcionar? Provavelmente. Manda quem pode e obedece quem tem juízo. Até o dia em que o poder, de tão concentrado, fique instável o suficiente para exigir uma nova diástole.
E, de crise em crise, a vida seguirá.
(*) Jornalista romeno-brasileiro , Colunista de política do jornal Correio Braziliense e edita o Blog do Alon, um dos principais blogs de informações e análises políticas do Brasil .
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