sábado, 30 de julho de 2011

Casamento maldito

Cristovam Buarque (*) para O Globo

A corrupção tem sido uma loteria ao contrário: o vencedor compra o bilhete e espera ser sorteado depois; o corrupto rouba primeiro porque sabe da pouca probabilidade de ser punido. A impunidade é o pai da corrupção, a mãe é a falta de valores morais: de compromissos sociais e sentimento pátrio entre os que se dedicam à política.

A vocação política deveria nascer do sentimento de responsabilidade com a coletividade, com o país, com a humanidade. Quando essa vocação surge, a vida pública é um sacrifício com o prazer de realizar a obra da construção do mundo. O político é um escultor. A escultura é o mundo que ele transforma por sua ação; e sua biografia termina esculpida por suas ações. Joaquim Nabuco é um dos exemplos brasileiros. Sua biografia se fez enquanto ele esculpia a abolição da escravatura.

Ele e sua carreira se confundiam com a luta e o resultado obtido. Impossível imaginar Nabuco roubando porque, mesmo que houvesse impunidade no seu tempo, ele fazia política com o propósito de realizar seu compromisso social com os escravos, seu amor patriótico por um país sem escravidão. Políticos comunistas, socialistas e capitalistas liberais lutavam pela democracia, e pela igualdade e fraternidade. Seus partidos se organizavam por suas bandeiras para lutar por um país melhor para todos.

A luta política era feita em trincheiras e o interesse político se realizava no coletivo. Ao perderem bandeiras, os militantes se transformaram em filiados, os políticos em carreiristas e os partidos em clubes eleitorais. As bandeiras, causas e ideias foram substituídas por metas eleitorais; os discursos e convencimentos pela manipulação do marketing; e os candidatos e políticos substituíram os líderes e estadistas. A luta foi substituída pelo apego aos cargos. Sem ideais e sem punição a porta da corrupção ficou escancarada.

É isso que vem ocorrendo no Brasil. As forças liberais realizaram a democracia e sentiram-se livres para usar o Estado como o celeiro de onde tirar proveito privado, pessoal ou empresarial. Aqueles que, além da democracia, ainda continuaram lutando pela ética e por bandeiras sociais, ao perderem as convicções e propostas, chegaram ao poder e passaram a conviver com a corrupção como um fato natural, não mais um crime da política contra o povo e o país. Ainda mais grave: a política passou a oferecer o magnetismo das benesses e do enriquecimento fácil.

A política permite o salto, de um dia para o outro, da sobrevivência com contracheque de assalariado para o poder de manejar bilhões de reais do dinheiro público. Coincidindo a impunidade jurídica e a falta de valores morais, a corrupção torna-se um filho natural da política e gera netos hediondos, tais como estradas paradas, porque a licitação foi burlada; alunos sem merenda, por causa do desvio de verbas; uma empresa escolhida no lugar de outra, porque pagou propina. Um triste produto desse casamento é a quebra da confiança nos políticos e a recusa dos jovens de ingressarem na política.

Ainda pior é quando os mais velhos olham com desconfiança para os jovens que desejam fazer política, como se eles quisessem obter vantagens, e não oferecer sacrifício ao país. A política fica sem dignidade, e os líderes que deveriam ser exemplos são vistos como aproveitadores. Quando as bandeiras tradicionais morrem antes de serem substituídas por novas e a impunidade coincide com um marco jurídico impotente para enfrentar e combater a corrupção, o país entra em crise de credibilidade.

É necessário romper esse casamento maldito, acabando com a impunidade e consolidando novas bandeiras. Mas vivemos em um tempo em que as bandeiras morrem antes que novas surjam. As ideias só se transformam em causas quando o povo as entende e aceita. Mas hoje a população está dividida entre uma parte pobre interessada apenas na solução dos problemas imediatos e uma parte rica desejosa de manter os benefícios aos quais está acostumada graças a um modelo de sociedade e economia que já não têm mais como manter tantos privilégios.

No vazio ideológico desse tempo, não se pode esperar até que novas causas sejam aceitas pela maioria. Por isso, a forma possível de enfrentar a corrupção no momento é romper o casamento maldito pelo lado da impunidade, eliminando-a enquanto os novos valores sociais vão sendo construídos aos poucos pela história.

(*) Engenheiro mecânico, Economista, Educador, Professor universitário e Senador da República PDT-DF).

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