sábado, 5 de dezembro de 2009

Agora é que o mundo muda mesmo


Bellini Tavares de Lima Neto (*)

O tempo é um desses elementos que comportam variadas apreciações e julgamentos. Se, de um lado, consegue apurar e refinar sentimentos, percepções e juízos, por outro nos enche de rugas e dores nas juntas. E costuma fazer seus estragos na memória. Eu estou tentando me lembrar onde foi que li uma história muito interessante a respeito de um sujeito que se destacava pela erudição. Em qualquer reunião social, aniversários, comemorações, em que se desenrolava uma prosa, lá estava o individuo se destacando com muita naturalidade graças à sua cultura, seus conhecimentos sobre diversos assuntos. E, como esse tipo de sucesso acaba sempre despertando um bocado de despeito e inveja por parte dos que não conseguem competir com o vitorioso, alguém começou a prestar atenção no desempenho do camarada. E acabou observando que tudo o que ele dizia era, invariavelmente relacionado com alguma palavra que iniciava com a letra “f”.
Exatamente por conta desse pormenor, o despeitado acabou descobrindo a chave da questão. 
O erudito cavalheiro havia sido preso e cumprido pena por alguns anos. Em sua cela não havia absolutamente nada com que pudesse se distrair. O único objeto estranho era um pedaço de um livro. Mais precisamente, era um pedaço de uma enciclopédia. E o pedaço que dividia a cela com o erudito cidadão era precisamente o relativo à letra “f”. 
O sujeito, então, acabou lendo aquilo até aprender rigorosamente tudo o que estava contido no verbete “f” da enciclopédia. Dito isso, eu até poderia dizer que, de súbito, a memória me acudiu e eu lembrei o nome do autor. Mentira. 
Eu tinha, quando muito, uma desconfiança e, então, fui em busca do mais extraordinário remédio contra a memória que a tecnologia nos deu de presente: o Google. 
E, bingo! Ele, mesmo: Malba Tahan.


A imprensa tem andado na crista da onde ultimamente, sobretudo em relação ao seu exato papel. Sobretudo os que têm sido alvo das descobertas feitas pela mídia são rigorosamente contra essa atitude investigativa da imprensa e tem insistido que a mídia deve apenas informar, nada além disso. Questão de ponto de vista ou, quem sabe, de sobrevivência. 
E, de nada adianta essa barulheira toda porque, em se tratando de uma turminha bastante conhecida e que tem um comportamento dos mais desastrosos em matéria de ética e honestidade, nem é preciso comentar muito. Basta noticiar. As atitudes são mais eloqüentes que mil palavras. Mas, a nossa querida imprensa, convenhamos, tem dado o que falar. E não é por conta de noticiar ou investigar as falcatruas que se sucedem em velocidade vertiginosa. E, isto sim, por causa de algumas atitudes da própria imprensa que, no mínimo, exigiriam uma explicação. Quem, por exemplo, acessar a “internet” com freqüência, vai se deparar quase todos os dias, com uma notinha a respeito da moça da Uniban, a do vestidinho. Essa criatura se transformou ou foi transformada naquilo que parece fascinar leitores, público e mídia em geral: uma celebridade. 
A garota que se enfiou num vestidinho dois números menores que seu manequim e saiu pelos corredores da escola bulindo com os caretas ou tarados de plantão não deve ter calculado o quanto aquilo iria render. Passados o escândalo, a atitude medieval dos alunos, as trapalhadas feitas pela direção da escola, essas, sim, questões relevantes e que mereceram o destaque da mídia, a jovem permanece na mídia sem faltar um só dia.


“A mocinha vai leiloar o vestidinho e a calcinha”. Há quem garanta, meio à boca pequena, que ela não estava usando calcinha, o que teria sido a causa (e não a calça) da confusão. Aí já seria o caso de se avaliar a eventual prática de um estelionato, caso a peça leiloada não tivesse estado no local anunciado, única justificativa para algum lance. “A moça colocou um aplique de alguns muitos centímetros”. Com direito a foto em companhia do profissional cabeleireiro quase em êxtase. “A mocinha vai voltar para a faculdade”. Aí, a educação e cultura respiram aliviadas. “A mocinha não vai mais voltar para a faculdade”. Recaída! 
As duas sofridas senhoras, a educação e a cultura, sofrem novo baque. “A garota está pensando em posar para uma revista”. Isso é uma verdadeira ode à originalidade. Quase nenhuma dessas celebridades percorreu esse trajeto.Alguém ainda se lembra da “fogueteira” ou da “caminhoneira do MST”? “A moçoila vai passar férias em um lugar assim e assado”. O Ministério do Turismo (existem, sim) já deve estar preparando um filmezinho publicitário mostrando que este é um país de todos. “Eu não sou uma celebridade”. Ah, quanta modéstia! A pergunta mais óbvia e previsível que me vem à mente é: mas, afinal de contas, que interesse isso tudo pode ter a alguém? Perguntinha traiçoeira. A resposta pode, perfeitamente, ser uma outra pergunta: “E como é que você sabe disso tudo? Por acaso anda acompanhando os passos da mocinha?” Não, não ando, não. É que contra esse tipo de coisa não há guarda-chuva. Isso está virando uma edição extraordinária do BBB. 
Mesmo sem acompanhar, não há como não saber. A coisa praticamente se atira sobre nós. As notícias, é claro, não a mocinha. Mas, a meu favor, posso garantir que só vejo as pequenas manchetes que aparecem nas páginas da internet porque não existe “anti-spam” que consiga barrar. No entanto, não há como negar que morro de curiosidade de descobrir que interesse pode haver em se saber o que essa garota está fazendo ou pretende fazer? Onde será que está o apelo que a minha percepção de javali não consegue captar?


Tirando a sempre plausível hipótese de que tudo não passe de efeitos da minha sensibilidade paquidérmica, se a insistência da mídia com a mocinha é decorrência de um real interesse do público em geral, aí fica um pouco chato para esse público. 
Ou muito chato, talvez, porque qualquer coisa é mais atraente, relevante e ilustrativa que o que anda fazendo ou deixando de fazer a garota do vestidinho curto depois de ter desafiado aquele bando esquisito que saiu gritando atrás dela. Afinal, não são quinze minutos de fama? Ora, ela já estourou o tempo faz tempo. Agora, se é só opção da imprensa, então já se pode começar a pensar que ela, a imprensa, anda se comportando exatamente da mesma forma que o sujeito erudito da história de Malba Tahan. 
A diferença é que, enquanto o personagem semi-aculturado era um especialista nas coisas do verbete “f”, os órgãos de comunicação parecem ter estacionado na letra “m” da enciclopédia. Mais precisamente, na “mesmice”, “mediocridade”.
E isso para ficar no que é socialmente permitido.


(*) Advogado - Morador em São Bernardo do Campo (SPO) - Escreve no site
"O Dia Nosso de Cada Dia"  - http://blcon.wordpress.com/

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