Ruth de Aquino (*)
Não importa mais o total de mortos na “tragédia” da serra do Rio de Janeiro. Não é insensibilidade. Numa semana de histórias lacrimejantes, de perdas e heróis, não basta lamentar o destino de milhares de famílias à beira de abismos. Não posso comemorar que milhões ou bilhões serão gastos para recuperar encostas e reassentar desabrigados. Engrossar correntes de solidariedade não resolve. Porque não acredito mais. A sociedade não acredita mais.
No bolso de quem vão parar as verbas liberadas após enchentes, diante do rosto compungido das autoridades? O prefeito de Teresópolis foi cassado por desvio. Quantos outros não roubaram dos que nada têm, dos que perderam tudo? Eu queria ver o governador do Rio de Janeiro e os prefeitos do Rio, de Petrópolis, Teresópolis e Friburgo submetidos a multa e julgamento. Por omissão e negligência criminosas. Não há prestação de contas detalhada, não há transparência no gasto das verbas de emergência. Não há pressa. Uma hora a casa cai.
O que aconteceu na serra fluminense é um escândalo muito maior que o da boate Kiss em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, embora o número de mortos seja inferior. Na hora do aguaceiro, não há portas de saída para quem vive em barraco em área de risco, não há bombeiro que dê jeito. Há sorte ou azar. Os sinalizadores da natureza matam crianças, velhos, fortes, fracos. O fogo da boate Kiss provocou maior repercussão pelo inusitado e por suas centenas de vítimas jovens de classe média e alta. As enchentes do verão são tão previsíveis que provocaram calos em nossa consciência.
Somos obrigados a ouvir a presidente Dilma Rousseff dizer, em Roma, que não houve falha no sistema de prevenção instalado em 2011 em Petrópolis? Isso é pecado, presidente. Somos obrigados a ouvir Dilma se indignar e pedir “medidas drásticas” para remoções em locais de risco? Quem é a responsável máxima pela política de habitação no Brasil? Quem tenta mudar, na planilha, nosso índice de desenvolvimento humano?
Se os governos disserem que essa é uma herança maldita, terão razão. Só que o governo do Rio de Janeiro está em seu segundo mandato. O governador Sérgio Cabral já enlameou os sapatos em tragédias suficientes para saber que não fez tudo o que deveria ter feito. Que chame os prefeitos à responsabilidade, que os critique quando desviarem dinheiro e estragarem doações, que lute por uma mudança em nossas leis ambientais surrealistas.
Na raiz dos desabamentos em áreas de risco, há dados que contribuem para o 85º lugar do Brasil no IDH mundial. Um é o deficit habitacional de mais de 5 milhões de casas. Outro é a pobreza. O terceiro é a ignorância, a falta de educação. É só juntar os três com a incompetência do Estado e chegamos à fórmula da “tragédia recorrente”.
A legislação ambiental não é rigorosa com os pobres. Por isso, é uma legislação assassina. Mas é kafkiana para a classe média que não paga propina e age de acordo com a lei. Um amigo arquiteto queria construir uma casa de 58 metros quadrados num loteamento edificado em Teresópolis, depois de pagar por 20 anos impostos para a prefeitura. Como o terreno estava a 10 quilômetros da fronteira do Parque Nacional, começou o imbróglio. A prefeitura jogou o caso para a Secretaria de Meio Ambiente, a secretaria jogou o caso para o Inea, do Estado, que mandou chamar uma engenheira florestal para catalogar com fichinhas as árvores. O mato rasteiro foi cortado à frente para a engenheira poder entrar. O arquiteto e professor foi processado por crime ambiental pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio). No formulário que preencheu, uma pergunta esclarecedora: precisará do terreno para sua subsistência?
Hoje é assim no Brasil, pela lei. Se a família é sem-terra, não tem onde morar, ergue um barraco onde quiser, embaixo de pedra, na beira do precipício, em cima do rio. Desmata, põe em perigo a si mesma e aos vizinhos. É só construir um cômodo durante a noite e botar uma criança ali dentro. Na manhã seguinte, o Estado não poderá mais tirá-la dali. No próximo verão, pai, mãe e filhos podem morrer nas chuvas anunciadas pelo sistema de prevenção elogiado por Dilma. E o teatro recomeça.
(*) Jornalista é colunista da Revista Época E-mail : raquino@edglobo.com.br
Não importa mais o total de mortos na “tragédia” da serra do Rio de Janeiro. Não é insensibilidade. Numa semana de histórias lacrimejantes, de perdas e heróis, não basta lamentar o destino de milhares de famílias à beira de abismos. Não posso comemorar que milhões ou bilhões serão gastos para recuperar encostas e reassentar desabrigados. Engrossar correntes de solidariedade não resolve. Porque não acredito mais. A sociedade não acredita mais.
No bolso de quem vão parar as verbas liberadas após enchentes, diante do rosto compungido das autoridades? O prefeito de Teresópolis foi cassado por desvio. Quantos outros não roubaram dos que nada têm, dos que perderam tudo? Eu queria ver o governador do Rio de Janeiro e os prefeitos do Rio, de Petrópolis, Teresópolis e Friburgo submetidos a multa e julgamento. Por omissão e negligência criminosas. Não há prestação de contas detalhada, não há transparência no gasto das verbas de emergência. Não há pressa. Uma hora a casa cai.
O que aconteceu na serra fluminense é um escândalo muito maior que o da boate Kiss em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, embora o número de mortos seja inferior. Na hora do aguaceiro, não há portas de saída para quem vive em barraco em área de risco, não há bombeiro que dê jeito. Há sorte ou azar. Os sinalizadores da natureza matam crianças, velhos, fortes, fracos. O fogo da boate Kiss provocou maior repercussão pelo inusitado e por suas centenas de vítimas jovens de classe média e alta. As enchentes do verão são tão previsíveis que provocaram calos em nossa consciência.
Somos obrigados a ouvir a presidente Dilma Rousseff dizer, em Roma, que não houve falha no sistema de prevenção instalado em 2011 em Petrópolis? Isso é pecado, presidente. Somos obrigados a ouvir Dilma se indignar e pedir “medidas drásticas” para remoções em locais de risco? Quem é a responsável máxima pela política de habitação no Brasil? Quem tenta mudar, na planilha, nosso índice de desenvolvimento humano?
Se os governos disserem que essa é uma herança maldita, terão razão. Só que o governo do Rio de Janeiro está em seu segundo mandato. O governador Sérgio Cabral já enlameou os sapatos em tragédias suficientes para saber que não fez tudo o que deveria ter feito. Que chame os prefeitos à responsabilidade, que os critique quando desviarem dinheiro e estragarem doações, que lute por uma mudança em nossas leis ambientais surrealistas.
Na raiz dos desabamentos em áreas de risco, há dados que contribuem para o 85º lugar do Brasil no IDH mundial. Um é o deficit habitacional de mais de 5 milhões de casas. Outro é a pobreza. O terceiro é a ignorância, a falta de educação. É só juntar os três com a incompetência do Estado e chegamos à fórmula da “tragédia recorrente”.
A legislação ambiental não é rigorosa com os pobres. Por isso, é uma legislação assassina. Mas é kafkiana para a classe média que não paga propina e age de acordo com a lei. Um amigo arquiteto queria construir uma casa de 58 metros quadrados num loteamento edificado em Teresópolis, depois de pagar por 20 anos impostos para a prefeitura. Como o terreno estava a 10 quilômetros da fronteira do Parque Nacional, começou o imbróglio. A prefeitura jogou o caso para a Secretaria de Meio Ambiente, a secretaria jogou o caso para o Inea, do Estado, que mandou chamar uma engenheira florestal para catalogar com fichinhas as árvores. O mato rasteiro foi cortado à frente para a engenheira poder entrar. O arquiteto e professor foi processado por crime ambiental pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMbio). No formulário que preencheu, uma pergunta esclarecedora: precisará do terreno para sua subsistência?
Hoje é assim no Brasil, pela lei. Se a família é sem-terra, não tem onde morar, ergue um barraco onde quiser, embaixo de pedra, na beira do precipício, em cima do rio. Desmata, põe em perigo a si mesma e aos vizinhos. É só construir um cômodo durante a noite e botar uma criança ali dentro. Na manhã seguinte, o Estado não poderá mais tirá-la dali. No próximo verão, pai, mãe e filhos podem morrer nas chuvas anunciadas pelo sistema de prevenção elogiado por Dilma. E o teatro recomeça.
(*) Jornalista é colunista da Revista Época E-mail : raquino@edglobo.com.br
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