quinta-feira, 21 de março de 2013

A propósito de Francisco

Mino Carta (*) 

Quando me ajoelhei aos pés do altar para receber a Primeira Comunhão, meus olhos ficaram embaçados e desmaiei. No dia anterior, de retiro espiritual orientado pelas minhas inesquecíveis freiras marcelinas, ao enfrentar momentos de inequívoca materialidade almoçara risotto com espinafre demoniacamente amanteigado. Não me surpreenderia se o próprio Lúcifer tivesse estacionado na cozinha. Passei uma noite no inferno, entre 16 e 17 de maio de 1942, dia da comunhão. 

Atordoado, à beira da inconsciência, degluti a hóstia que me foi imposta goela abaixo por santas razões, pois a oportunidade não poderia ser desperdiçada a bem das expectativas dos familiares presentes, e logo me reencontrei na sacristia diante de um café da manhã monumental. Boa lembrança, além de definitiva. 

Pela magnitude do evento, ganhei presentes diversos, como era do costume da época e do país, entre eles uma refinada edição de 1927 de I Fioretti di San Francesco, obra medieval nascida de contribuições anônimas redigidas em perfeito italiano para contar passagens salientes da vida de São Francisco de Assis. O qual fora batizado João e não nascera para ser santo, e sim rico senhor, talvez um tanto devasso. 

A prima de minha mãe, que me presenteou com o livro, escreveu na dedicatória: “Este é o dia mais belo da sua vida”. Confesso que não me dei conta disso, a despeito da magnificência do desjejum. Quase 71 anos depois, tiro da estante I Fioretti ao saber que o novo papa será o primeiro Francisco da história dos sucessores de Pedro, o pescador. 

Arrisco-me a entender que o nome não foi escolhido ao acaso, e logo me vem à memória um afresco da Basílica de São Francisco, em Assis, um da série deslumbrante pintada por Giotto para narrar a vida do santo ao longo das paredes da igreja superior, um dos recantos mais poéticos, e poéticos até a transcendência, em que um indivíduo possa mergulhar mundo afora. O afresco intitula-se O Sonho do Papa, e colhe o santo a reerguer literalmente a Igreja. 

Francisco, em quem Dante divisou um semeador de luz com a pronta anuência do amigo Giotto, foi reformador herói, sem contar o poeta que escreveu O Cântico das Criaturas, ou Cântico ao Irmão Sol, obra-prima da língua italiana, e, portanto, o santo mais próximo de Cristo, cujo exemplo transformou na Regra da sua vida e da sua pregação em defesa da natureza e dos desvalidos. 


A lição de Francisco é, na essência, um desafio à Igreja e ao papa Inocêncio III, estadista cercado pelo luxo, grudado à crosta terrestre e às suas ambições e vaidades, e em cuja época o poder temporal do Vaticano atingiu o apogeu, quando o sucessor de Pedro interferia na política do Sacro Romano Império. Francisco surge como prova dos descaminhos papais, é o manso contestador que põe o dedo na chaga em nome da ideia indiscutivelmente cristã da revelação e do amor. 

Leio hoje no prefácio dos Fioretti, de autoria de um autor francês: “Vislumbrem a sociedade que nos cerca: qual é o vício radical da nossa época? (…) Somente os insensatos podem lamentar os progressos da ciência, somente os mais puros materialistas podem atribuir seu desconforto à Revolução Francesa ou à Declaração dos Diretos do Homem, quando, de verdade, ela estabelece apenas o cumprimento do Decálogo (…)” 

E mais adiante: “É no coração que estamos doentes, neste centro misterioso onde se originam as fontes da vida. Discórdias internacionais e agitações internas; guerras estrangeiras e guerras civis; crises individuais pelas quais muitos entre nós vivem sem viver, são atores que interpretam seu papel em lugar de homens que conquistam sua individualidade. E isso tudo decorre de uma única causa. Povos e indivíduos esqueceram as realidades interiores, as realidades viventes, e deixaram-se seduzir pelo erro fatal de que o dinheiro é o instrumento da felicidade”. 

Não há como imaginar que a igreja de Roma possa mudar, até mesmo pela rota de um reformismo lento e gradual. Da mesma forma, a leitura acima mostra que o mundo também continua o mesmo. Quanto a Jorge Mario Bergoglio, o nome que acaba de escolher para reinar parece indicar grandes propósitos, embora não se exclua que o novo papa tenha pensado, de fato, em Francisco Xavier, santo da sua Ordem, a jesuíta. Aquela nascida da espada de Inácio de Loyola no palco faustoso do barroco, iluminado pelas fogueiras dos autos de fé. 

Outra a Ordem de Francisco de Assis, a figura maior da cristandade depois do próprio Cristo, a dos Frades Menores. Personagens de luminosidade cegante, que a bola de argila a nos hospedar, enquanto gira em torno do Irmão Sol, até hoje não foi capaz de merecer. 

(*) É diretor de redação da Revista CartaCapital.

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