terça-feira, 11 de fevereiro de 2014

Um bom professor deve ser, na verdade, um ótimo guia

Folha de São Paulo 

Salman Khan
O matemático norte-americano Salman Khan não baseia suas aulas em nenhum teórico da educação como Jean Piaget. Mesmo assim, consegue uma proeza: prender a atenção dos alunos --e são milhões de alunos. 

Criador do Khan Academy, plataforma de estudos na internet que direciona os estudos dos usuários a partir de exercícios básicos, ele defende que o conhecimento não deve estar em caixinhas. Ou seja: quem gosta de matemática pode, sim, ter aptidão para letras ou história. E pode aprender as áreas do conhecimento juntas.

"O processo de aprendizagem é um só", diz o especialista que acaba de lançar no Brasil a tradução do livro "Um Mundo, uma Escola" (Editora Intrínseca, R$ 29,90). Também acaba de chegar ao Brasil a própria Khan Academy. 
A Fundação Lemann lançou neste mês a versão em português do material (http://pt.khanacademy.org). Isso inclui 100 mil exercícios de matemática e mil videoaulas de várias áreas do conhecimento --o que corresponde a 20% do total de vídeos em inglês. 

Abaixo, a entrevista exclusiva para a Folha, concedida por meio do Skype. 

Folha - Como surgiu a ideia de colocar aulas na internet? 
Salman Khan - Uma sobrinha minha de 12 anos começou a ter problemas em matemática na escola e eu ofereci ajuda. Isso foi em 2004. Eu morava em Boston, e ela morava em Nova Orleans. Então, começamos a falar por telefone e pela internet. O processo ajudou, e o aprendizado dela em sala foi se acelerando. Depois eu comecei a trabalhar em ferramentas para ajudá-la. A Khan Academy surgiu de uma tentativa de simplesmente ajudar meus sobrinhos na escola. Comecei com ela, depois passei a ajudar os irmãos dela. Em 2005 registrei o domínio do Khan Academy na internet, passei a postar os vídeos com as aulas, meus amigos começaram a assisti-los e divulgá-los. A coisa ganhou escala e o mundo inteiro começou a assistir os vídeos e fazer os exercícios [hoje a plataforma educativa traz 100 mil exercícios de matemática e quase cinco mil videoaulas sobre várias disciplinas]. E o que aconteceu com sua sobrinha que tinha problemas com matemática? Ela se deu bem em matemática, melhorou muito e rapidamente. Ela acabou se dedicando à escrita. Acho que ela é uma boa escritora porque ela é boa em matemática. Penso que as duas atividades estão relacionadas, ambas são similares e utilizam muito o cérebro. Hoje ela estuda escrita no Sarah Lawrence College (EUA). 

Baseado nessa ideia de multidisciplinaridade que você, que é matemático, também dá aulas de disciplinas como história na Khan Academy? 
[risos] Eu acho que sou uma pessoa multidisciplinar. E acho que a maioria das pessoas também pode ser. É como eu disse: eu não acredito que matemática ou escrita sejam diferentes. Ambos usam partes importantes do cérebro. É isso que quero passar aos meus filhos. Eles não se veem como pessoas de humanas, de exatas ou de biológicas. Eles se veem como estudantes, como pessoas que podem aprender e se envolver com o que quiserem. Não acredito que o conhecimento seja segmentado em caixas. 

Essa maneira conectada e multidisciplinar é uma nova forma de ver a educação? 
Na verdade, não. Esse era o modelo da educação há cerca de 200 anos. Mas era um modelo muito caro porque as pessoas tinham mestres individuais, não daria para fazer uma educação de maneira massiva como é feita hoje. Há, claro, ganhos no novo modelo educacional com professores por áreas do conhecimento ensinando um grupo de alunos. Mas estamos, sim, retomando ideias antigas de educação. O que temos de novo agora são as tecnologias que nos permitem retomar esses padrões de educação que foram dispensados ao longo do tempo. E temos escala. No Khan Academy nós não estamos falando de um milhão de pessoas, mas sim de dez milhões de usuários que estão no sistema de ensino e que integram o Khan Academy na sua rotina de aprendizado. Isso é inovador. Grandes universidades americanas como MIT e Harvard passaram a disponibilizar cursos na internet recentemente. 

Elas foram influenciadas pela proposta da Khan Academy? 
A ideia de oferecer educação de graça e em qualquer em qualquer lugar está relacionada de alguma maneira. A diferença é a maneira como estamos fazendo. Os cursos on-line massivos de plataformas como o edX e Coursera [que trazem cursos abertos de universidades como MIT, Harvard e Caltech] são focados em digitalizar cursos que já existem presencialmente. Ou seja, de colocar on-line algo que já existia. Além disso esses cursos têm data para começar e terminar. Nós somos mais focados em como prover às pessoas conhecimento. Vamos mostrar para você onde você precisa ir e você irá, no seu tempo e nas suas condições. Mas assim como o edX, a Khan Academy está mostrando um caminho para o qual a educação está seguindo, sem fronteiras na internet. Sim, estamos definitivamente em um novo mundo. Nos últimos dez ou cinco anos qualquer pessoa pode aprender algo que decidiu estudar se tiver acesso à internet. 

O truque é: como relacionamos o aprendizado na internet e o que se aprende presencialmente com o contato com os professores? 
Ainda não temos resposta. 

O que é uma escola boa? 
É uma escola que tem professores incríveis e que oferece a eles uma estrutura suficiente para que trabalhem com os alunos possibilidades de explorar o conhecimento. É preciso dar a eles flexibilidade de tempo para que eles não sejam obrigados a ensinar determinado assunto em determinado tempo. Os alunos precisam aprender com os professores como direcionar seu próprio estudo. E aí entra a tecnologia. O professor não deve usar tecnologia somente porque alguém mandou que o fizesse. 

Os professores sabem usar tecnologia em sala de aula? 
Todos temos de aprender. Primeiramente é preciso que a tecnologia esteja presente na sala de aula. É o primeiro passo. Isso deve começar a acontecer cada vez mais. Você disse que boa escola é a que tem "professores incríveis". 

O que é isso? 
Muita gente associa um professor incrível com alguém que dá aulas sensacionais. Eu acho o contrário. Um professor incrível é o que conhece profundamente o assunto que pretende passar, mas que entende que precisa passar ao estudante ferramentas para que ele descubra o conhecimento por si só. O bom professor na verdade é um ótimo guia. 

Você dá aulas presenciais? 
Não. Apenas para amigos e para a família [risos]. Eu já dei aulas no passado, muito antes da Khan Academy, mas nunca pensei em seguir minha carreira nesse sentido. 

Então você nunca estudou para ser um professor? 
Não. 

Como surgiu a ideia de traduzir o material da Khan Academy para o português?
Nós fomos procurando pela Fundação Lemann há alguns anos e achamos a ideia ótima. 
Eu visitei o Brasil com a minha família, conheci um pouco do contexto local e falamos da tradução. Somos um dos piores países do mundo em matemática, segundo o exame internacional Pisa. 

A Khan Academy pode ajudar os brasileiros? 
Não posso fazer promessas, mas posso dizer que existe essa mesma expectativa aqui nos Estados Unidos. 

Vocês sobrevivem apenas com doações? 
Sim. Temos suporte da Fundação Bill & Melinda Gates, do Google e de grandes empresas e de pessoas físicas. Qualquer moeda ajuda.

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