De Mia Couto no livro "Na Berma de Nenhuma Estrada"
O homem se via envelhecer, sem protesto contra o tempo.
Ansiava, sim, que a morte chegasse. Que chegasse tão sorrateira e morna como lhe surgiram as mulheres da sua vida. Nessa espera não havia amargura.
Ele se perguntava: de que valia ter vivido tão bons momentos se já não se lembrava deles, nem a memória de sua existência lhe pertencia?
Em hora de balanço: nunca tivera nada de que fosse dono, nunca houve de quem fosse cativo. Só ele teve o que não tinha posse: saudade, fome, amores.
Como a morte tardasse, decidiu meter-se na estrada e caminhar ao seu encontro.
Tomou a direção do oeste.
Na sombra desse ponto cardeal, todos sabemos se encontra a moradia da morte.
Iniciou a sua excursão rumo ao poente sem que de ninguém se despedisse.
Os adeuses são assunto dos vivos e ele se queria já na outra vertente do tempo. Caminhava há semanas quando avistou um homem alto, um rosto de enevoados traços. Trazia pela trela um bicho estranho, entre cão e hiena.
Animal mal-aparentado, com ar maleitoso.
- Esta é a morte - disse o homem apontando o cão.
E acrescentou - Sou eu que a passeio pelo mundo.
- E você quem é?
- Eu sou o Tempo.
E explicou que caminhavam assim, atrelados um ao outro, desde sempre.
Ultimamente, porém, a Morte andava esmorecida, quase desqualificada.
Razão de que, entre os vivantes, se desfalecia agora a molhos vistos, por dá cá nenhuma palha.
Morria-se mesmo sem intervenção dela, da Morte.
O velho, desiludido, explicou ao Tempo a razão da sua viagem.
Ele vinha ao encontro da Morte:
- Eu queria que ela me levasse para o sem retorno.
- Vai ser difícil.
- Lhe imploro: fiz todo este caminho para ela me levar.
- Veja como ela anda: desmotivada, focinho pelo chão.
- Mas eu queria tanto terminar-me!
- Impossível, insistiu o Tempo.
E para comprovar, soltou o animal.
O bicho se afastou, arrastado e agônico, para o fundo de uma valeta.
Ali se enroscou decadente como um pano gasto.
O velho se condoeu e perguntou ao bicho:
- O que posso fazer por si?
- Eu só quero beber.
Não era de água a sua sede. Queria palavras.
Não dessas de uso e abuso nas palavras tenras como o capim depois da chuva.
Essas de reacender crenças.
O velho prometeu garimpar entre todos os seus vocabulários e encontrar lá os materiais de reacender o mais perdido fôlego.
Urdia, seu secreto plano: iria ao sonho e de lá retiraria uma paixão de palavras.
Na manhã seguinte, foi de encontro à besta moribunda.
O bicho estava agora mais hiena que cão.
Uma baba amarela lhe escorria pelo focinho.
Apenas revirou os olhos quando sentiu o homem se aproximar.
- Trouxe?
E ele lhe entregou o sonho, as palavras, mais seu inebriamento.
O animal sugou tudo aquilo com voracidade.
Seus olhos eram os de uma criança sorvendo estória antes do sono.
E assim se seguiram durante umas manhãs.
Em cada uma, o velho se anichava e confiava seus elixires.
De cada vez, o bicho se animava mais um pouco.
No final, a Morte se recompôs com tais pujanças que o velho ganhou coragem e lhe apresentou o pedido, seu anseio de que o mundo se lhe fechasse.
A Morte escutou o pedido de olhos fechados.
- Amanhã vou cumprir o meu mandato - anunciou ela.
Nessa noite, o velho nem dormiu, posto perante a sua última noite.
Sentindo-se derradeiras, passou em revista a sua vida.
Nos últimos anos, ele tinha perdido a inteira memória.
Mas agora, naquela noite, lhe revieram os momentos de felicidade, toda a sua existência se lhe desfilou. e sentiu saudade, melancolia por não poder revisitar amigos, terras e mulheres. até lhe assaltou a ideia de escapar dali e reganhar aventuras no caminho da vida.
Para não ser atacado por mais recordações - com o risco do arrependimento - ele foi ao rio e caminhou ao sabor da corrente.
Andar no sentido da água é o modo melhor para nos lavarmos das lembranças.
No dia seguinte, o velho foi à valeta onde encontrou a Morte.
Ela estava cansada, respiração ofegante.
E disse: - Já matei.
- Matou? Matou quem?
- Matei o Tempo!
E apontou o corpo desfalecido do homem alto.
A hiena, então, estendeu a trela ao velho e lhe ordenou:
- Agora leva-me tu a passear!
(*) Pseudônimo de António Emílio Leite Couto, é um biólogo e escritor moçambicano
O homem se via envelhecer, sem protesto contra o tempo.
Ansiava, sim, que a morte chegasse. Que chegasse tão sorrateira e morna como lhe surgiram as mulheres da sua vida. Nessa espera não havia amargura.
Ele se perguntava: de que valia ter vivido tão bons momentos se já não se lembrava deles, nem a memória de sua existência lhe pertencia?
Em hora de balanço: nunca tivera nada de que fosse dono, nunca houve de quem fosse cativo. Só ele teve o que não tinha posse: saudade, fome, amores.
Como a morte tardasse, decidiu meter-se na estrada e caminhar ao seu encontro.
Tomou a direção do oeste.
Na sombra desse ponto cardeal, todos sabemos se encontra a moradia da morte.
Iniciou a sua excursão rumo ao poente sem que de ninguém se despedisse.
Os adeuses são assunto dos vivos e ele se queria já na outra vertente do tempo. Caminhava há semanas quando avistou um homem alto, um rosto de enevoados traços. Trazia pela trela um bicho estranho, entre cão e hiena.
Animal mal-aparentado, com ar maleitoso.
- Esta é a morte - disse o homem apontando o cão.
E acrescentou - Sou eu que a passeio pelo mundo.
- E você quem é?
- Eu sou o Tempo.
E explicou que caminhavam assim, atrelados um ao outro, desde sempre.
Ultimamente, porém, a Morte andava esmorecida, quase desqualificada.
Razão de que, entre os vivantes, se desfalecia agora a molhos vistos, por dá cá nenhuma palha.
Morria-se mesmo sem intervenção dela, da Morte.
O velho, desiludido, explicou ao Tempo a razão da sua viagem.
Ele vinha ao encontro da Morte:
- Eu queria que ela me levasse para o sem retorno.
- Vai ser difícil.
- Lhe imploro: fiz todo este caminho para ela me levar.
- Veja como ela anda: desmotivada, focinho pelo chão.
- Mas eu queria tanto terminar-me!
- Impossível, insistiu o Tempo.
E para comprovar, soltou o animal.
O bicho se afastou, arrastado e agônico, para o fundo de uma valeta.
Ali se enroscou decadente como um pano gasto.
O velho se condoeu e perguntou ao bicho:
- O que posso fazer por si?
- Eu só quero beber.
Não era de água a sua sede. Queria palavras.
Não dessas de uso e abuso nas palavras tenras como o capim depois da chuva.
Essas de reacender crenças.
O velho prometeu garimpar entre todos os seus vocabulários e encontrar lá os materiais de reacender o mais perdido fôlego.
Urdia, seu secreto plano: iria ao sonho e de lá retiraria uma paixão de palavras.
Na manhã seguinte, foi de encontro à besta moribunda.
O bicho estava agora mais hiena que cão.
Uma baba amarela lhe escorria pelo focinho.
Apenas revirou os olhos quando sentiu o homem se aproximar.
- Trouxe?
E ele lhe entregou o sonho, as palavras, mais seu inebriamento.
O animal sugou tudo aquilo com voracidade.
Seus olhos eram os de uma criança sorvendo estória antes do sono.
E assim se seguiram durante umas manhãs.
Em cada uma, o velho se anichava e confiava seus elixires.
De cada vez, o bicho se animava mais um pouco.
No final, a Morte se recompôs com tais pujanças que o velho ganhou coragem e lhe apresentou o pedido, seu anseio de que o mundo se lhe fechasse.
A Morte escutou o pedido de olhos fechados.
- Amanhã vou cumprir o meu mandato - anunciou ela.
Nessa noite, o velho nem dormiu, posto perante a sua última noite.
Sentindo-se derradeiras, passou em revista a sua vida.
Nos últimos anos, ele tinha perdido a inteira memória.
Mas agora, naquela noite, lhe revieram os momentos de felicidade, toda a sua existência se lhe desfilou. e sentiu saudade, melancolia por não poder revisitar amigos, terras e mulheres. até lhe assaltou a ideia de escapar dali e reganhar aventuras no caminho da vida.
Para não ser atacado por mais recordações - com o risco do arrependimento - ele foi ao rio e caminhou ao sabor da corrente.
Andar no sentido da água é o modo melhor para nos lavarmos das lembranças.
No dia seguinte, o velho foi à valeta onde encontrou a Morte.
Ela estava cansada, respiração ofegante.
E disse: - Já matei.
- Matou? Matou quem?
- Matei o Tempo!
E apontou o corpo desfalecido do homem alto.
A hiena, então, estendeu a trela ao velho e lhe ordenou:
- Agora leva-me tu a passear!
(*) Pseudônimo de António Emílio Leite Couto, é um biólogo e escritor moçambicano
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