segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Todo filho é pai da morte de seu pai

Fabrício Carpinejar (*) 

" Há uma quebra na história familiar onde as idades se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem sentido: é quando o filho se torna pai de seu pai. 

É quando o pai envelhece e começa a trotear como se estivesse dentro de uma névoa. Lento, devagar, impreciso. 
É quando aquele pai que segurava com força nossa mão já não tem como se levantar sozinho. 
É quando aquele pai, outrora firme e intransponível, enfraquece de vez e demora o dobro da respiração para sair de seu lugar. 
É quando aquele pai, que antigamente mandava e ordenava, hoje só suspira, só geme, só procura onde é a porta e onde é a janela - tudo é corredor, tudo é longe. 
É quando aquele pai, antes disposto e trabalhador, fracassa ao tirar sua própria roupa e não lembrará de seus remédios. 

E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão trocar de papel e aceitar que somos responsáveis por aquela vida. 
Aquela vida que nos gerou depende de nossa vida para morrer em paz. 

Todo filho é pai da morte de seu pai. 
Ou, quem sabe, a velhice do pai e da mãe seja curiosamente nossa última gravidez. 
Nosso último ensinamento. 

Fase para devolver os cuidados que nos foram confiados ao longo de décadas, de retribuir o amor com a amizade da escolta. 
E assim como mudamos a casa para atender nossos bebês, tapando tomadas e colocando cercadinhos, vamos alterar a rotina dos móveis para criar os nossos pais. 

Uma das primeiras transformações acontece no banheiro. 
Seremos pais de nossos pais na hora de pôr uma barra no box do chuveiro. 
A barra é emblemática. A barra é simbólica. A barra é inaugurar um cotovelo das águas. Porque o chuveiro, simples e refrescante, agora é um temporal para os pés idosos de nossos protetores. 

Não podemos abandoná-los em nenhum momento, inventaremos nossos braços nas paredes. A casa de quem cuida dos pais tem braços dos filhos pelas paredes. 
Nossos braços estarão espalhados, sob a forma de corrimões. 
Pois envelhecer é andar de mãos dadas com os objetos, envelhecer é subir escada mesmo sem degraus. 

Seremos estranhos em nossa residência. 
Observaremos cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e preocupação. Seremos arquitetos, decoradores, engenheiros frustrados. 
Como não previmos que os pais adoecem e precisariam da gente? 
Nos arrependeremos dos sofás, das estátuas e do acesso caracol, nos arrependeremos de cada obstáculo e tapete. 

E feliz do filho que é pai de seu pai antes da morte, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se despede um pouco por dia.

Meu amigo José Klein acompanhou o pai até seus derradeiros minutos. 
No hospital, a enfermeira fazia a manobra da cama para a maca, buscando repor os lençóis, quando Zé gritou de sua cadeira: 
— Deixa que eu ajudo. 
Reuniu suas forças e pegou pela primeira vez seu pai no colo. 
Colocou o rosto de seu pai contra seu peito. Ajeitou em seus ombros o pai consumido pelo câncer: pequeno, enrugado, frágil, tremendo. 

Ficou segurando um bom tempo, um tempo equivalente à sua infância, um tempo equivalente à sua adolescência, um bom tempo, um tempo interminável. 
Embalou o pai de um lado para o outro. 
Aninhou o pai. 
Acalmou o pai. E apenas dizia, sussurrado: 

— Estou aqui, estou aqui, pai! 

que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é que seu filho está ali. 

(*) É poeta, cronista e jornalista . E-Mail: carpinejar@terra.com.br

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