Bellini Tavares de Lima Neto (*)
Eu parei de fumar em 1982. 29 de dezembro. Deve ter sido pela manhã.
Mas, ninguém pense que foi um grande ato de heroísmo.
Foi o resultado de um processo psicológico de dois anos, desde a última tentativa frustrada. E a certeza de que minha natureza era bem mais abjeta que a do mais vil dos ratos e que na minha relação com o cigarro, mandava ele e pronto. Durante esses dois anos de processo, uma das coisas que eu me peguei fazendo era tentar mastigar a fumaça. Pois é, eu tentava morder, mastigar a fumaça só para testar a consistência e o sabor.
O raciocínio, reconhecidamente palerma, era simples: um pedaço de chocolate a gente mastiga, saboreia e engole. Dizem que fica alguns segundos na língua, uns vinte minutos no estômago e o resto da vida em todas as partes redondas do corpo. Já a fumaça do cigarro não tem nada disso: nem gosto, nem sustança. Claro que todo esse percurso mental tinha o único propósito de me convencer de que fumar não fazia o menor sentido. Prejuízo à saúde, incômodo em locais públicos, perda de apetite, nada disso serviu.
No amor e na guerra vale tudo.
Tenho tido a sensação que algumas atitudes e reações que adotamos no cotidiano se parecem muito com aquela minha imagem da fumaça do cigarro.
Quer ver?
Lá estou eu dirigindo meu carro. Lépido e fagueiro, escutando uma musiquinha. De repente, levo uma fechada de um outro motorista. Pronto. Vem à tona o cão-tinhoso que me habita as profundezas. Aquele velho ID do trio Id- Ego-Superego descoberto ou inventado pelo Dr. Freud. É o tal que nos impele a matar ou trucidar, dependendo do tamanho do oponente. Quero sangue. Mas, os outros dois parceiros de cela, os agentes Ego e Superego tratam de refiná-lo o máximo possível. E, em vez de matar o outro motorista, limito-me a lhe exibir o meu dedo anular e tentar emparelhar os veículos para dizer alguma coisa destemperada sobre sua genitora. É o revide, parceiro fiel da raiva.
E se não consigo fazer nada, aí é que o tinhoso me pega de vez e fica aquela queimação por dentro. Fico devendo a mim mesmo e ao mundo, dívida pesada, indigesta.
Aí é que entra a fumaça do cigarro.
O que é que vem depois do dedo anular ou o elogio materno?
Com sorte, rigorosamente nada. Sim, porque nos dias de hoje, em que um tiro em alguém custa menos que o tal dedo anular, corro o risco de ser contemplado com o ingresso nas estatísticas. Ou então, com todo esse culto à musculação e artes marciais, posso ganhar uma maquiagem instantânea em um ou nos dois olhos, aquele tom arroxeado que dá um destaque especial. Tirando isso tudo, não acontece nada. Não volto ao estado anterior ao da fechada, não corrijo o comportamento do outro. Só mato a fome de vingança, dou de comer ao revide. E isso ao módico custo de uma altíssima descarga de adrenalina, um aumento da pressão arterial, aceleração de batimento cardíaco, uma queimação no estômago e um gosto amargo na boca. E, de quebra, enquanto isso dura, não consigo fazer ou pensar em qualquer outra coisa. Viro um submisso da raiva e um escravo da vingança. Naqueles instantes, passo a viver exclusivamente em função da dupla raiva-revide.
E essa é uma situação de rápida duração e toda ela governada por emoção profunda e nem sempre controlável. Mas, pensando bem, não tem mais ou menos o mesmo jeitão de quando alguém perpetra uma vingança contra alguém?
Conheço casais que se separam brigando e passam o resto da vida ou boa parte dela pensando num jeito de dar o troco ao outro cônjuge. Simplesmente emprega todas as energias, e criatividade pensando em como se vingar, em mostrar ao ex-parceiro ou parceira quem é que ganhou a briga. Ora, se eu brigo com a minha parceira a ponto de me separar, é sinal que ela não vale mais a pena. E, aí, consumo tempo e energia pensando num jeito de mostrar isso a ela. Não é gastar vela com mau defunto?
Principalmente porque, se, um dia, eu conseguir realizar a minha vingança, é quase certo que vou ficar com a mesma cara do cachorro que corre atrás do pneu do carro e consegue pegar.
Não conheço pergunta pior para se responder que o terrível: “e daí?”
Vira e mexe aparece um palerma querendo quebrar um recorde amalucado e se expõe a riscos de vida para isso. Eu não consigo resistir à perguntinha.
Com a vingança e o revide eu tenho sempre a mesma pergunta.
O cigarro eu larguei. Essa sabedoria toda, ainda estou muito longe dela e nem sei se vou conseguir um dia. Mas a gente devia pensar um pouco nisso já que essa história de que a vingança é um prato que se come frio é balela.
O prato é azedo. Pior que fumaça de cigarro.
(*) Advogado, avô, e corintiano
Eu parei de fumar em 1982. 29 de dezembro. Deve ter sido pela manhã.
Mas, ninguém pense que foi um grande ato de heroísmo.
Foi o resultado de um processo psicológico de dois anos, desde a última tentativa frustrada. E a certeza de que minha natureza era bem mais abjeta que a do mais vil dos ratos e que na minha relação com o cigarro, mandava ele e pronto. Durante esses dois anos de processo, uma das coisas que eu me peguei fazendo era tentar mastigar a fumaça. Pois é, eu tentava morder, mastigar a fumaça só para testar a consistência e o sabor.
O raciocínio, reconhecidamente palerma, era simples: um pedaço de chocolate a gente mastiga, saboreia e engole. Dizem que fica alguns segundos na língua, uns vinte minutos no estômago e o resto da vida em todas as partes redondas do corpo. Já a fumaça do cigarro não tem nada disso: nem gosto, nem sustança. Claro que todo esse percurso mental tinha o único propósito de me convencer de que fumar não fazia o menor sentido. Prejuízo à saúde, incômodo em locais públicos, perda de apetite, nada disso serviu.
No amor e na guerra vale tudo.
Tenho tido a sensação que algumas atitudes e reações que adotamos no cotidiano se parecem muito com aquela minha imagem da fumaça do cigarro.
Quer ver?
Lá estou eu dirigindo meu carro. Lépido e fagueiro, escutando uma musiquinha. De repente, levo uma fechada de um outro motorista. Pronto. Vem à tona o cão-tinhoso que me habita as profundezas. Aquele velho ID do trio Id- Ego-Superego descoberto ou inventado pelo Dr. Freud. É o tal que nos impele a matar ou trucidar, dependendo do tamanho do oponente. Quero sangue. Mas, os outros dois parceiros de cela, os agentes Ego e Superego tratam de refiná-lo o máximo possível. E, em vez de matar o outro motorista, limito-me a lhe exibir o meu dedo anular e tentar emparelhar os veículos para dizer alguma coisa destemperada sobre sua genitora. É o revide, parceiro fiel da raiva.
E se não consigo fazer nada, aí é que o tinhoso me pega de vez e fica aquela queimação por dentro. Fico devendo a mim mesmo e ao mundo, dívida pesada, indigesta.
Aí é que entra a fumaça do cigarro.
O que é que vem depois do dedo anular ou o elogio materno?
Com sorte, rigorosamente nada. Sim, porque nos dias de hoje, em que um tiro em alguém custa menos que o tal dedo anular, corro o risco de ser contemplado com o ingresso nas estatísticas. Ou então, com todo esse culto à musculação e artes marciais, posso ganhar uma maquiagem instantânea em um ou nos dois olhos, aquele tom arroxeado que dá um destaque especial. Tirando isso tudo, não acontece nada. Não volto ao estado anterior ao da fechada, não corrijo o comportamento do outro. Só mato a fome de vingança, dou de comer ao revide. E isso ao módico custo de uma altíssima descarga de adrenalina, um aumento da pressão arterial, aceleração de batimento cardíaco, uma queimação no estômago e um gosto amargo na boca. E, de quebra, enquanto isso dura, não consigo fazer ou pensar em qualquer outra coisa. Viro um submisso da raiva e um escravo da vingança. Naqueles instantes, passo a viver exclusivamente em função da dupla raiva-revide.
E essa é uma situação de rápida duração e toda ela governada por emoção profunda e nem sempre controlável. Mas, pensando bem, não tem mais ou menos o mesmo jeitão de quando alguém perpetra uma vingança contra alguém?
Conheço casais que se separam brigando e passam o resto da vida ou boa parte dela pensando num jeito de dar o troco ao outro cônjuge. Simplesmente emprega todas as energias, e criatividade pensando em como se vingar, em mostrar ao ex-parceiro ou parceira quem é que ganhou a briga. Ora, se eu brigo com a minha parceira a ponto de me separar, é sinal que ela não vale mais a pena. E, aí, consumo tempo e energia pensando num jeito de mostrar isso a ela. Não é gastar vela com mau defunto?
Principalmente porque, se, um dia, eu conseguir realizar a minha vingança, é quase certo que vou ficar com a mesma cara do cachorro que corre atrás do pneu do carro e consegue pegar.
Não conheço pergunta pior para se responder que o terrível: “e daí?”
Vira e mexe aparece um palerma querendo quebrar um recorde amalucado e se expõe a riscos de vida para isso. Eu não consigo resistir à perguntinha.
Com a vingança e o revide eu tenho sempre a mesma pergunta.
O cigarro eu larguei. Essa sabedoria toda, ainda estou muito longe dela e nem sei se vou conseguir um dia. Mas a gente devia pensar um pouco nisso já que essa história de que a vingança é um prato que se come frio é balela.
O prato é azedo. Pior que fumaça de cigarro.
(*) Advogado, avô, e corintiano
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