A eterna ciranda
Marcia de Holanda Montenegro (*) para O Estado de S.Paulo
Retoma-se a discussão recorrente sobre a necessidade da reforma da legislação de combate às drogas no País. Vozes de prestígio levantam, às vésperas da eleição majoritária, a bandeira da descriminação do uso de drogas - tese que, relançada, parece tomar corpo e expressão nos jornais.
Em verdade, estamos perdendo a guerra para o narcotráfico - que tem o Brasil como grande mercado consumidor e rota para a Europa e os Estados Unidos.
Uma das consequências do ineficiente combate tem sido o aumento constante do número de usuários. A solução de alguns especialistas é aparentemente simples: descriminar a conduta do uso próprio de drogas, mesmo que hoje os simples usuários já não sejam condenados à pena privativa de liberdade. Algumas propostas sugerem tornar atípica apenas a conduta do uso da maconha, droga considerada leve, enquanto outras teses mais ousadas propõem a descriminação dos entorpecentes em geral.
Não há dúvida que o Brasil nunca combateu com eficácia o uso e o comércio das drogas. O aparato repressivo do Estado esteve sempre aquém do andar da carruagem dos narcotraficantes. O crime organizado instalou-se com facilidade no País e tem crescido em berço esplêndido.
Entretanto, o narcotráfico jamais se desenvolveria com o vigor que exibe, não fosse o combate capenga à lavagem de dinheiro - crime que lhe dá sustentação e sem o qual não sobrevive.
Por outro lado, dados divulgados pelo Ministério da Justiça e publicados recentemente por este jornal mostram que cerca de 90% dos traficantes condenados são pequenos varejistas, aqueles que se expõem nas ruas, nas portas das escolas, em praças, bares, botecos de periferia e nas entradas de favelas para realizar a transação com os usuários. As prisões, concentradas nesses pequenos criminosos, ainda que profiláticas, em nada afetam a alta organização do narcotráfico, que permanece intocada. Parte desse contingente, que engorda as estatísticas da máquina repressiva, é de traficantes eventuais, os não-profissionais, surpreendidos nas transgressões entre amigos em casa, em bares, em festas, no interior de veículos, etc.
Minha experiência de mais de uma década no Fórum Criminal da capital, que recebe os inquéritos policiais de tráfico, instaurados nas delegacias de polícia da cidade e no departamento especializado, confirma os dados do Ministério da Justiça. De fato, o grosso dos traficantes investigados e condenados é inexpressivo diante da organização criminosa que os mobiliza e recruta, posto que facilmente substituídos.
Com a prisão dos varejistas o narcotráfico não se desestabiliza, ainda que sejam eles imprescindíveis ao êxito do negócio, responsáveis que são pelo abastecimento dos consumidores de rua, pelo crescimento das vendas e, em consequência, pelo aumento do número de usuários e dependentes. (E há quem defenda dever ser atípica a conduta dos pequenos traficantes.)
Presos os pequenos traficantes, outros surgem nas ruas, repostos pela organização criminosa. Presos, processados, condenados e novamente substituídos... É um enxugar constante de gelo, sensação que toma parte de muitos profissionais do Direito, comprometidos com a defesa da sociedade.
Os varejistas desconhecem quem são os grandes distribuidores de drogas e os responsáveis pelo fabrico e pela movimentação do entorpecente pelo País, e assim deve ser para que a empresa não quebre. Conhecem apenas o distribuidor imediato, que na maior parte das vezes também não é identificado. Com a prisão dos soldados não se chega aos oficiais do tráfico. As interceptações telefônicas que buscam a identificação e prisão de megatraficantes, na maior parte das vezes, fracassam.
Quando, em operações excepcionais, algum "chefão" é preso, não se duvida possa ele continuar a comandar a empresa criminosa de dentro da prisão.
A venda e o consumo de drogas, notadamente o crack - a cocaína dos pobres -, barato e de efeito devastador, crescem entre os jovens. O Estatuto da Criança e do Adolescente - lei de Primeiro Mundo na intenção de reeducar e ressocializar menores infratores - parece divorciado da nossa realidade social. Mas também não se pode esperar que a eficácia das medidas socioeducativas impostas aos jovens traficantes e usuários dependa unicamente da lei e de seus aplicadores.
Muitos desses jovens infratores se convertem em traficantes depois de adquirirem o vício. Dependentes da droga que comercializam, atados estão à profissão ilegal, que muitas vezes passa de pai para filho.
Num país em que a educação não chega a parte expressiva da população; em que o desemprego e os baixos salários - com ou sem crise - estão presentes; em que a legislação penal, quando rígida, leva a interpretações benéficas aos criminosos nas altas Cortes; em que o alvo principal das investigações são os traficantes de rua, falar em descriminação do uso de drogas é desviar o foco do problema.
Num país que tem dificuldade de acabar com a Cracolândia, instalada há anos nesta capital (apenas a tirada de circulação dos traficantes varejistas e dos usuários que ali ficam tem gerado novos varejistas e o retorno dos usuários ou, na melhor das hipóteses, a mudança geográfica de ambos), em que a desigualdade social cresce de forma alarmante, com famílias inteiras fazendo das ruas sua morada - como se vê até mesmo em bairros nobres da cidade de São Paulo, como Higienópolis e Pacaembu -, o prognóstico é o pior possível.
O combate ao tráfico e ao uso de entorpecentes não se resolve com a simples alteração da legislação. É oportuno citar a mensagem contida no editorial Ação policial na Cracolândia, publicado pelo Estado no dia 1.º de março (A3): a questão é complexa e as autoridades públicas precisam se entender.
(*) Procuradora de Justiça do Ministério Público do Estado de São Paulo
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