segunda-feira, 19 de julho de 2010

Onde foi que eu me perdi?

Bellini Tavares de Lima Neto (*)

Já faz algum tempo que eu venho me questionando sobre os motivos do nenhum efeito que essa copa do mundo de 2010 estava me causando.
Todo esse alvoroço sobre convocação dos jogadores, quem vai, quem fica (se é que se pode dizer que alguém fica já que ninguém vive por aqui, mesmo), nada disso vinha me despertando qualquer emoção ou nem mesmo interesse. E fiquei pensando em como isso era diferente tempos atrás.
Na copa do mundo de 1970, por exemplo.

Ao final daquele domingo memorável, fui parar na Avenida Paulista com uma verdadeira multidão comemorando o feito histórico do tri-campeonato. Isso apesar das sombras que envolviam o pais, vítima da ditadura militar, além do fato de que eu acabara de conseguir um emprego novo bem uma semana antes. Foi uma verdadeira epopéia acordar ás seis da manhã da segunda-feira, numa ressaca federal e ir trabalhar porque faltar com uma semana me pareceu demais até para os meus jovens vinte e poucos anos. E, no entanto, essa copa do mundo que se aproxima não tem conseguindo me despertar o menor interesse.
“Deve ser porque eu não conheço quase ninguém que foi convocado”.
Essa foi a primeira explicação que dei a mim mesmo e, confesso, me pareceu bastante plausível. De fato, quase todos os integrantes do grupo vivem e jogam no exterior há tanto tempo e desde tão cedo que eu não me lembro de ter visto quase nenhum deles por aqui, não sei onde jogavam, quem eram, nada. Deve ser essa falta de familiaridade com os craques. E a explicação serviu por algum tempo, estava até me deixando mais conformado com a minha falta de interesse por um tema que, afinal, é um dos maiores catalisadores de emoção da terrinha, se na for disparado o maior deles.
Afinal, sempre é um pouco estranho destoar demais da maioria, especialmente para alguém com uma incorrigível vocação para o comum, o anonimato e a trivialidade como eu.
Mas a explicação teve efeito meramente paliativo, não me serviu por muito tempo. Continuei com a sensação estranha de que havia mais do que a simples falta de familiaridade com os guerreiros que levarão a bandeira nacional para o campo de lutas na África do Sul. Continuei a pensar, pensar, pensar.

Pensar pode ser uma armadilha dessas em que se cai e não se consegue se safar, um hábito às vezes inconveniente e com custos meio excessivos, um pouco caro demais sobretudo para quem não tem lá uma fortuna de recursos emocionais e psicológicos para pagar o preço. Mas, a coisa começou a clarear quando disparou de vez essa história toda de que os tais selecionados são os guerreiros, que um dos critérios para a escolha foi o patriotismo, o amor à nação, o desprendimento e disposição para se doar incondicionalmente em favor da causa que, em outras palavras, é a vitória nos campos de futebol da África do Sul. Enquanto os donos da seleção lançam seus cantos de guerra concitando a todos a se martirizarem pela vitória se for preciso, o pessoal da campanha presidencial afronta a legislação eleitoral sem a menor cerimônia. As multas que o tribunal aplica viram um ótimo mote para uma gracinha ou outra. “Alguém vai me ajudar a pagar isso aqui?” diz um dos infratores se controlando para não despejar uma gargalhada na cada de quanto magistrado aparecer pela frente. E o técnico da seleção me pede para ser guerreiro de arquibancada?

Enquanto a nação é convocada para se unir numa só voz, numa corrente para frente para, como nos tempos da copa do México, se lançar em campanha pela glória e honra nacionais, a maior emissora de televisão leva ao ar um programa de humor, desses feitos de diferentes quadros que se repetem semanalmente.
Um deles consiste num cidadão do presente que viaja no tempo em busca dos momentos históricos do país. Proclamação da Independência, Abolição da escravatura, Proclamação da República, eventos desse porte. O viajante chega, então, no momento em que alguma coisas dessas está para acontecer e tenta desesperadamente convencer os protagonistas a não levar aquilo adiante porque não vai dar certo. E argumenta com todos os desacertos, com as patranhas, as pabulagens, as maracutaias, as mamatas e trampolinagens que vão acontecer no futuro em uma cidade que ainda será construída para ser a capital do país. Quanto mais os personagens históricos refutam, mais o viajante mostra com contundência tudo o que se passará no futuro deles, presente do viajante e nosso, por conseqüência.

Ouço aquilo tudo e fico um pouco desconcertado com o fato de que tudo, rigorosamente tudo o que o personagem do programa humorístico diz é a mais pura expressão da verdade. Não há nada de ficção ou exagero na descrição do que é o Brasil de hoje e de sempre. E tudo isso vira tema de programa humorístico.
Nós fazendo troça de nós mesmos.
E o técnico da seleção me pede para ser guerreiro de arquibancada?

No tempo da televisão em preto e branco eram 90 milhões em ação. Agora são 200 milhões. Cresceu, não? E a honra nacional está em jogo outra vez.
Como tem acontecido pelo menos a cada quatro anos. Mas, em se tratando de honra nacional, será que essa periodicidade não é um pouco baixa?
Fico com a sensação de que a freqüência e intensidade não parecem grande coisa.

Nesse intervalo entre uma copa e outra, o tema não empolga muito, não tem muito apelo. Nós preferimos continuar aplaudindo discurso apoplético, andando em má companhia, contando mentira. E também optamos por não respeitar faixa de pedestre, por voltar o velocímetro do carro na hora de vender, por fazer gambiarra na televisão a cabo, por não pagar IPTU esperando a anistia. Enquanto um seleto grupo falcatrua em estilo federal, estadual, municipal e autárquico, uma imensa massa vai falcatruando no seu cotidiano, uma passada de perna aqui, uma rasteirinha ali, um votinho trocado por uma vantagenzinha e assim vamos.
E a honra nacional? Bem, essa fica reservada e preservada para ser exaltada na próxima copa. E o técnico da seleção me pede para ser guerreiro de arquibancada?

Pois é, vem o técnico da seleção deitando falação sobre guerreiros, sobre patriotismo, sobre doação em prol da pátria nos campos de futebol? Não sei, não.
Acho que eu perdi alguma coisa. Se, ao menos, ele não tivesse convocado tanto volante...

(*) Advogado, agora avô e morador em São Bernardo do Campo (SP)
Escreve para o site O Dia Nosso De Cada Dia - http://blcon.wordpress.com/

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