O Ernest Hemingway dizia que um conto deve ser como a ponta de um iceberg. O iceberg é o que não está escrito, é o que o leitor infere do que está escrito. Da ponta que aparece. Na verdade, quem escreve o conto é o leitor, induzido pelo contista. O contista induz, o leitor deduz. Hemingway escreveu o melhor exemplo da sua própria teoria, o conto Os Assassinos, sobre um homem à espera dos pistoleiros que irão matá-lo. O homem sabe que seus assassinos estão chegando mas não foge nem faz nada para evitá-los. O conto é isto.
Não se fica sabendo por que o homem será executado ou o motivo da sua resignação. Isso está no iceberg. Quando fizeram o filme da história do Hemingway, filmaram o iceberg.
Como a moda na era da linguagem digital dos computadores, que é quase uma volta aos hieróglifos, é a concisão, as pontas dos icebergs literários ficam cada vez menores e o trabalho dos leitores cada vez maior. Proponho ao leitor disposto a trabalhar a coautoria dos contos que seguem, todos eles com a parte que me cabe - ou a ponta que aparece - completa, só faltando a parte submersa. Que pode ser do tamanho que você quiser, leitor. São todos variações do conto do Hemingway.
Destino. Através do alambrado, ela viu a velha Noca se aproximando com a faca na mão. Não sabia se ela seria a escolhida, desta vez. Já vira a velha Noca em ação, sabia o que a esperava. Pensou em se refugiar no fundo da galinheiro, em se esconder da velha Noca, mas desistiu. Não adiantaria. Se era para ser a sua vez, que fosse. Ela não filosofava, mas em algum lugar do seu pequeno cérebro se formou um pensamento: espécie é destino.
A Babi. Alguém sentou ao seu lado no bar. Ele não olhou para o lado. Sabia quem era. Ouviu a voz conhecida dizer:
- Você não é fácil de encontrar...
- O que você quer?
- A Babi mandou entregar isto. Disse que está pronta para voltar, se você a aceitar. Que está disposta a esquecer tudo.
E o homem colocou uma aliança no topo do bar.
Ele olhou a aliança, depois levantou a mão esquerda e mostrou que tinha cortado fora o dedo anular.
- Diga à Babi que nunca mais.
Depois ouviu o ruído inconfundível de uma arma sendo engatilhada. E a voz do outro:
- Então eu tenho outro recado da Babi.
Matuba. - Pô, Matuba.. Você pegou todas. Até o pênalti.
- É. Tava numa tarde boa, né?
- E o que nós combinamos com o Trombinha?
- O quê?
- Era pra amolecer. Deixar passar umas três. E você pegou até o pênalti que eu fiz.
- Pera aí. Acho que essa reunião eu perdi. Era pra amolecer?
- Estava todo mundo combinado. Nós atrasando bola envenenada a tarde inteira e você pegando todas. Até o meu pênalti! O que que nos vamos dizer pro Trombinha?
- Vamos dizer a verdade. Que eu sou surdo e não entendi a combinação.
- E você é surdo, Matuba?
- Hein?
- Quer um conselho? Foge do país.
- Pra onde?
- Uma das Guianas.
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