Janio de Freitas (*) para Folha de São Paulo
Se há tráfico, há compradores; e se há compradores, há utilização, tão criminosa como o crime que a propicia
A VENDA DE DADOS pessoais de milhões de contribuintes está tratada pelo governo, pelas polícias e mesmo pelos meios de comunicação como uma irregularidade a mais no país dos escândalos. Mas a dimensão de sua gravidade talvez exceda a de todas as grandes irregularidades depois das que derrubaram Fernando Collor.
Para começar, é preciso distinguir, e tratar como distintas, duas faces do problema: uma, o uso eleitoral a que se presta a quebra dos dados sigilosos de determinadas pessoas; outra, a violação sistemática, em vários setores do serviço público, dos dados de milhões de cidadãos. A evidência que sobressai de imediato, nessa violação, é tratar-se de transgressão criminosa à Constituição, que afirma ser inviolável a intimidade de todo brasileiro.
A polícia paulista deu-se ao trabalho, afinal, de apreender um dos CDs à venda no centro de São Paulo. Nele não basta que se encontrem os valores da restituição, aos contribuintes de São Paulo, do excedente de imposto tomado pela Receita Federal. Tem a ousadia de trazer até a senha, com os promissores 12 dígitos dos segredos do Estado, que talvez alguma investigação se interesse por saber a quem e em que dependência oficial tem servido, para fins diversos. Não é um pormenor qualquer do CD, muito ao contrário. Pode ser claro indicativo de que a transgressão nem cuida mais de apagar (eu devia dizer deletar, é?) possíveis pistas de procedência. Bem, há outra hipótese: uso de senha que desvie a pista de autoria. Não faz diferença para o que importa: a transgressão sistemática.
A zona franca do tráfico de sigilo, na rua Santa Efigênia e adjacências, centro de São Paulo, não pode ser tida como única. Já houve sinais de tráfico semelhante no Rio e em outras cidades. Há pouco mesmo foi descoberto que dados relativos a aposentados serviam a uma vasta fraude contra os cofres da Previdência. Nem por isso há sinal algum de investigação em escala equivalente ao problema, seja de polícias estaduais ou da federal.
E nem mesmo da Receita, cuja reação, ao ser divulgada agora a quebra de sigilo de eminências do PSDB, mostrou-se muito surpresa, depois reticente e, por fim, econômica. Surpresa? Mas o sigilo de Eduardo Jorge Caldas Pereira, tudo indica, foi quebrado há um ano. Logo, não havia verificação da confiabilidade do sistema de sigilo, incluído o pessoal. Economia nas informações sobre a investigação? Mas o sigilo é um dever para com os contribuintes e, portanto, a explicação de sua inconfiabilidade é uma dívida com os cidadãos em geral.
Não se sabe o que tem havido em decorrência do tráfico de sigilos, às próprias vítimas, em ocorrências assim, interessando calar-se. Se, porém, há o tráfico, há os compradores. Se há os compradores, há utilização. Criminosa como o crime que a propicia. Só não há o reconhecimento, com suas decorrências, da incalculável gravidade desse problema.
(*) Jornalista . Mantém há anos uma coluna no Jornal Folha de São Paulo
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