Carta Capital
Apoiada pelas bancadas religiosas do Congresso Nacional, a chamada ‘Bolsa Estupro’ cria o risco de transformar a vítima em criminosa. Segundo especialistas ouvidas por CartaCapital, o texto do Estatuto do Nascituro (aprovado na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados na quarta-feira 5) viola direitos das mulheres e as incentiva a considerar crime o aborto em casos de estupro.
“Na medida em que se paga para ela não fazer esse aborto, é como se a vítima passasse a ser a criminosa”, avalia Flávia Piovesan, professora doutora de direito na PUC-SP e integrante do Cladem (Comitê da América Latina e Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher). “É um desrespeito a essa mulher estuprada e violentada quando, na minha avaliação, deveríamos assegurar sua autonomia, direito à saúde e dignidade para que decida se quer ou não proceder com uma gravidez indesejada.”
O texto – originalmente de autoria dos deputados federais Luiz Bassumas (PT-BA) e Miguel Martini (PHS-MG) e que teve parecer favorável do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) – prevê acompanhamento psicológico a vítimas de estupro e, na hipótese de a mãe não dispor de condições econômicas suficientes para saúde e educação da criança, garante que “o Estado arcará com os custos respectivos” até que venha a ser identificado o pai ou o bebê seja adotado.
Além de ser criticado por incentivar vítimas de estupro a terem o bebê fruto de violência sexual, o projeto prevê que a mãe estabeleça vínculo com o autor do estupro. O texto determina que, se identificado, o agressor seja obrigado a pagar pensão alimentícia à criança, o que pressupõe contato regular da mulher violentada com o criminoso. “Trata-se de uma violência à nossa dignidade. Além de dar status de paternidade ao estuprador, nos obriga a ter uma relação de proximidade com ele. Ou seja, de alguma forma, legitima a violência sexual e remedeia a vítima ‘criminalizada’ com uma bolsa”, critica Jolúzia Batista, socióloga e assessora do CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e Assessoria).
Na sessão da comissão de quarta-feira, o deputado Cláudio Puty (PT-PA) criticou a proposta e alertou para o fato de ela “colocar em primeiro lugar o direito do estuprador, em segundo lugar o direito do feto e, em terceiro lugar, o direito da mulher que foi vítima de uma violência”. Sua posição foi vencida na comissão, entretanto.
Saúde pública
Para Jolúzia, além de abrir um “precedente perigoso” para que direitos conquistados – como a decisão favorável do STF ao aborto de anencéfalos – sejam retirados, a proposta toca em um ponto delicado da saúde no País: os abortos clandestinos. “Atualmente, o aborto representa a quinta causa de mortalidade materna no Brasil. Cerca de 4 milhões de mulheres recorrem anualmente ao aborto em condições clandestinas”, lembra Jolúzia. “É fundamental que seja, então, visto e amparado como um ato seguro do ponto de vista de saúde pública.”
Em março, o CFM (Conselho Federal de Medicina) defendeu a liberação do aborto até a 12ª semana de gestação e enviou à comissão do Senado responsável pela reformulação do Código Penal um documento sugerindo que a interrupção da gravidez até o terceiro mês seja permitida em casos que vão além daqueles envolvendo riscos à mãe, anencefalia de fetos ou estupro. Para o CFM, o aborto deve deixar de ser crime também se houver emprego não consentido de técnica de reprodução assistida, se o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida independente ou se for a vontade da gestante até a 12ª semana de gravidez.
A Comissão de Bioética e Biodireito da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) do Rio de Janeiro também emitiu um parecer crítico em relação à decisão da comissão, no qual ressalta problemas ao atribuir "personalidade jurídica" ao nascituro, "que é tratado como pessoa, gozando dos direitos assegurados à criança e ao adolescente, atendimento no SUS, dentre outros". Além disso, atentou para a necessidade de não se confundir nascituro e embrião: enquanto "o primeiro diz respeito ao ser humano já no contexto de uma gestação, o segundo se refere ao material biológico proveniente da concepção, do encontro dos gametas masculino e feminino".
Parlamentares x STF
O Estatuto do Nascituro não parece ser uma iniciativa isolada. Para Flávia, a proposta faz parte de uma estratégia das bancadas religiosas frustradas com posições do STF (Supremo Tribunal Federal) em reafirmar garantias constitucionais. Seria, portanto, uma resposta a decisões do Supremo como o sinal verde dado à interrupção da gravidez de anencéfalos e às pesquisas com células-tronco de embriões. “Sem contar que é um retrocesso à garantia prevista no nosso Código Penal, de 1940”, diz sobre o artigo 128, que permite o aborto em caso de violência sexual. “O estatuto retrocede o mínimo que se conseguiu até agora em caso de estupro e risco de vida. Vejo-o como um movimento perigoso.”
O polêmico projeto de lei ainda será analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara. Se aprovado, vai para votação no plenário.
Apoiada pelas bancadas religiosas do Congresso Nacional, a chamada ‘Bolsa Estupro’ cria o risco de transformar a vítima em criminosa. Segundo especialistas ouvidas por CartaCapital, o texto do Estatuto do Nascituro (aprovado na Comissão de Finanças e Tributação da Câmara dos Deputados na quarta-feira 5) viola direitos das mulheres e as incentiva a considerar crime o aborto em casos de estupro.
“Na medida em que se paga para ela não fazer esse aborto, é como se a vítima passasse a ser a criminosa”, avalia Flávia Piovesan, professora doutora de direito na PUC-SP e integrante do Cladem (Comitê da América Latina e Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher). “É um desrespeito a essa mulher estuprada e violentada quando, na minha avaliação, deveríamos assegurar sua autonomia, direito à saúde e dignidade para que decida se quer ou não proceder com uma gravidez indesejada.”
O texto – originalmente de autoria dos deputados federais Luiz Bassumas (PT-BA) e Miguel Martini (PHS-MG) e que teve parecer favorável do deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) – prevê acompanhamento psicológico a vítimas de estupro e, na hipótese de a mãe não dispor de condições econômicas suficientes para saúde e educação da criança, garante que “o Estado arcará com os custos respectivos” até que venha a ser identificado o pai ou o bebê seja adotado.
Além de ser criticado por incentivar vítimas de estupro a terem o bebê fruto de violência sexual, o projeto prevê que a mãe estabeleça vínculo com o autor do estupro. O texto determina que, se identificado, o agressor seja obrigado a pagar pensão alimentícia à criança, o que pressupõe contato regular da mulher violentada com o criminoso. “Trata-se de uma violência à nossa dignidade. Além de dar status de paternidade ao estuprador, nos obriga a ter uma relação de proximidade com ele. Ou seja, de alguma forma, legitima a violência sexual e remedeia a vítima ‘criminalizada’ com uma bolsa”, critica Jolúzia Batista, socióloga e assessora do CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e Assessoria).
Na sessão da comissão de quarta-feira, o deputado Cláudio Puty (PT-PA) criticou a proposta e alertou para o fato de ela “colocar em primeiro lugar o direito do estuprador, em segundo lugar o direito do feto e, em terceiro lugar, o direito da mulher que foi vítima de uma violência”. Sua posição foi vencida na comissão, entretanto.
Saúde pública
Para Jolúzia, além de abrir um “precedente perigoso” para que direitos conquistados – como a decisão favorável do STF ao aborto de anencéfalos – sejam retirados, a proposta toca em um ponto delicado da saúde no País: os abortos clandestinos. “Atualmente, o aborto representa a quinta causa de mortalidade materna no Brasil. Cerca de 4 milhões de mulheres recorrem anualmente ao aborto em condições clandestinas”, lembra Jolúzia. “É fundamental que seja, então, visto e amparado como um ato seguro do ponto de vista de saúde pública.”
Em março, o CFM (Conselho Federal de Medicina) defendeu a liberação do aborto até a 12ª semana de gestação e enviou à comissão do Senado responsável pela reformulação do Código Penal um documento sugerindo que a interrupção da gravidez até o terceiro mês seja permitida em casos que vão além daqueles envolvendo riscos à mãe, anencefalia de fetos ou estupro. Para o CFM, o aborto deve deixar de ser crime também se houver emprego não consentido de técnica de reprodução assistida, se o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida independente ou se for a vontade da gestante até a 12ª semana de gravidez.
A Comissão de Bioética e Biodireito da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) do Rio de Janeiro também emitiu um parecer crítico em relação à decisão da comissão, no qual ressalta problemas ao atribuir "personalidade jurídica" ao nascituro, "que é tratado como pessoa, gozando dos direitos assegurados à criança e ao adolescente, atendimento no SUS, dentre outros". Além disso, atentou para a necessidade de não se confundir nascituro e embrião: enquanto "o primeiro diz respeito ao ser humano já no contexto de uma gestação, o segundo se refere ao material biológico proveniente da concepção, do encontro dos gametas masculino e feminino".
Parlamentares x STF
O Estatuto do Nascituro não parece ser uma iniciativa isolada. Para Flávia, a proposta faz parte de uma estratégia das bancadas religiosas frustradas com posições do STF (Supremo Tribunal Federal) em reafirmar garantias constitucionais. Seria, portanto, uma resposta a decisões do Supremo como o sinal verde dado à interrupção da gravidez de anencéfalos e às pesquisas com células-tronco de embriões. “Sem contar que é um retrocesso à garantia prevista no nosso Código Penal, de 1940”, diz sobre o artigo 128, que permite o aborto em caso de violência sexual. “O estatuto retrocede o mínimo que se conseguiu até agora em caso de estupro e risco de vida. Vejo-o como um movimento perigoso.”
O polêmico projeto de lei ainda será analisado pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara. Se aprovado, vai para votação no plenário.
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