Lúcio Flávio Pinto (*) para O Estado do Tapajós
Construir a primeira grande hidrelétrica na Amazônia sob uma ditadura foi relativamente fácil, desafios de engenharia à parte. Em pouco mais de uma década a usina de Tucuruí, no rio Tocantins, no Pará, a quarta maior do mundo, saiu das pranchetas e começou a funcionar, em 1984. Esse modelo foi seguido até o início da construção da segunda grande hidrelétrica, que avançaria no rumo oeste, chegando ao rio Xingu. Ela também não devia enfrentar resistências incontornáveis. Acabaria se consumando pela força da sua própria formulação;
Na semana passada esse modelo chegou novamente ao impasse e bem próximo da exaustão. O principal canteiro de obras da usina de Belo Monte foi de novo ocupado por índios, desta vez em número ainda maior (170 deles), e dispostos a resistir ao desalojamento. Tão dispostos que simplesmente rasgaram a ordem de reintegração da posse do local pelo consórcio construtor.
Apesar de o mandado ter sido assinado por um juiz federal, Sérgio Wolney de Oliveira Guedes, da subseção judicial de Altamira, os índios desprezaram o documento. Depois de o destruírem, cantaram e dançaram para reafirmar sua decisão de se manter no sítio Pimental, sob o cerco de tropa militar e da polícia.
É pouco provável que qualquer agrupamento de não-índios ousasse tanto. Mas aqueles que voltaram pela segunda vez em maio a interromper as obras da hidrelétrica tinham motivos reforçados para essa atitude. Os munduruku, os mais numerosos, tinham visto um dos seus integrantes ser morto durante escaramuça (ainda não completamente elucidada) mais a oeste ainda, no rio Tapajós. A Força Nacional decidiu investir contra os munduruku que tentavam impedir os trabalhos preliminares visando uma nova usina de grande porte. Houve reação, choque e violência.
Além desse precedente em sua própria terra, os índios estavam também sensibilizados pelo conflito que irrompeu durante outro cumprimento de mandado judicial, em Mato Grosso do Sul, numa área de litígio entre os terena e um fazendeiro. O índio Oziel Gabriel foi morto a tiro. Para os ocupantes do canteiro de Belo Monte esse foi um estímulo à radicalização: só aceitariam negociar se fosse diretamente com o ministro Gilberto Carvalho, chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República. Não em Brasília, como ele queria: no Xingu mesmo.
Depois de conversas tensas, aceitaram ir até o ministro, com quem acertaram audiência para esta terça-feira, 4. Aceitaram que os serviços no canteiro fossem retomados, sem deixar o local. A expectativa foi transferida para a reunião na capital federal. Os índios querem que a construção no Xingu e o início das obras do complexo hidrelétrico do Tapajós sejam condicionados a ouvi-los e obter-lhes a aprovação. Pela legislação, essa audiência prévia tem caráter consultivo e não deliberativo.
A grande maioria da população brasileira apoiaria também uma radicalização do governo, convencida que os índios violaram a lei, abusaram dos seus direitos e ultrapassaram os limites do bom senso. A minoria é que se posiciona em favor da causa indígena, atribuindo-lhe prioridade sobre os sempre lembrados objetivos do desenvolvimento (e mesmo da segurança) nacional.
Mesmo contando com o apoio da maioria, o governo não pode seguir-lhe as sugestões apenas por isso. Diante do estado emocional dos índios, um confronto em Belo Monte pode se tornar mais sangrento do que o da Terra Indígena Buriti, em Mato Grosso do Sul, de raízes mais remotas. A deliberação sobre o que fazer não é fácil. Acostumado à política dos fatos consumados da ditadura, o Brasil ainda não sabe encarar corretamente as minorias na democracia. A tendência mais evidente é fazê-las se curvar a determinações superiores.
A sociedade brasileira não pode permitir que o governo exerça o monopólio da decisão diante desse impasse. De um lado, não se pode deixar levar pelo canto da sereia do bom selvagem. Os índios, mesmo tão amplamente minoritários, nem por isso devem ser desconsiderados. Também são podem ser tidos por donos da verdade. É preciso analisar a situação na perspectiva do bem coletivo em geral, para o qual, ao menos na Amazônia, a voz dos seus mais antigos ocupantes (e aqueles que detêm, proporcionalmente, as mais extensas áreas de terras) é fundamental, indispensável.
Os índios têm exagerado nas suas mais recentes manifestações, tanto por razões próprias quanto pelo endosso dos que os defendem de forma absoluta, sem qualquer relativização, talvez movidos por uma consciência de culpa primitiva. Mas não se pode lançar a culpa sobre os indígenas sem antes perquirir pela trajetória do projeto de Belo Monte.
Mesmo aqueles que partilham a crença na prioridade de aproveitar o potencial energético dos rios da Amazônia para suprir as necessidades nacionais, como a melhor opção dentre as várias alternativas de geração de energia nova substancial para o país, não podem deixar de atentar para fatos preocupantes, escabrosos ou alarmantes do empreendimento.
O primeiro deles é o custo da obra. Quando ficou pronto o projeto, o custo da usina foi calculado em 16 bilhões de reais. Quando a obra foi licitada, em 2010, o orçamento cresceu para R$ 19 bilhões. Dois anos depois do início da construção, passou de R$ 29 bilhões. As estimativas mais atualizadas já batem em R$ 32 bilhões.
Em menos de quatro anos a previsão de custo da hidrelétrica duplicou. Mas não ficará aí. Se outro fato não voltar a interferir sobre o valor, as interrupções causadas pelas manifestações de protesto influirão na majoração. Desde o seu início, as obras foram paralisadas por 15 invasões e 16 dias de greve, que contribuíram para atrasar em quase um ano o cronograma (sem contar a ocupação atual).
Aí entra um fator complicador no cálculo entre o dano e sua compensação. O efeito pode induzir ressarcimento maior do que a perda, graças aos termos do seguro. O que faz lembrar uma máxima de Bertolt Brecht (melhor do que assaltar um banco é fundar um) ignorada pelos grupos da luta armada contra a ditadura: quanto mais assaltavam agências bancárias, provocando a condenação da população, mais lucros davam aos bancos.
A primeira suspeita em relação a esse crescimento tão significativo e rápido do orçamento de Belo Monte é de corrupção. Só retrospectivamente se teve uma ideia mais clara da influência que o superfaturamento e outras manobras alistaras tiveram nos reajustes de Tucuruí, que começou com previsão de 2,1 bilhões de dólares e, ao final, passou de US$ 10 bilhões (valor não atualizado).
As mudanças societárias e de gestão nas obras de Belo Monte ajudaram muito a fortalecer essa desconfiança, que se transformou automaticamente em certeza para aqueles menos afeitos a provar o que proclamam como verdade.
Os empreiteiros, que a princípio estavam dispostos a bancar a construção da usina e operá-la, logo mudaram de posição. Abandonaram a concessionária de energia vencedora do leilão e assumiram o lugar – sempre privilegiado – de construtores da grande obra, sua especialidade e sua principal fonte de faturamento. Seu lugar foi ocupado, a toque de caixa, pelos fundos de pensão e empresas energéticas federais. A troca sugere a transferência para o tesouro nacional dos encargos (e prejuízos) de uma obra ainda com ponderável margem de incerteza.
Belo Monte foi concebida ainda pela ditadura, que, no eclipse do último governo militar, o do general João Figueiredo, inaugurou Tucuruí. Seu encaminhamento foi interrompido, ao final do não menos melancólico governo do atual senador José Sarney, pela grande manifestação de protesto do I Encontro dos Povos Indígenas de Altamira, em 1989.
As instituições internacionais, que financiariam e avalizariam o empreendimento, recuaram. Diz-se que sensibilizadas pela reação dos índios. Mas pode-se admitir também que aproveitando essa circunstância para se desvencilhar de uma parceria que as incomodava, por vários motivos, inclusive geopolíticos.
Adversários e substitutos do regime anterior, os governos democráticos têm com ele, em relação à Amazônia, a identidade do desenvolvimentismo. Para a esquerda no poder, marxista ou não, o primitivo é considerado um obstáculo a superar para poder alcançar a modernidade e suas derivações alternativas. São mais sensíveis às causas da minoria e gostariam de contemporizar com as divergências para manter sua imagem “progressista”, mas essa maior tolerância, comparativamente ao que antes se chamava de direita, não significa acatamento ao diverso. No entanto, acarreta consequências de várias ordens.
Os governos Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma nunca esconderam seu firme propósito de continuar a construir hidrelétricas nos rios de maior potencial energético da Amazônia e transferir grandes blocos de energia por extensas linhas de transmissão para os maiores centros consumidores do país. Esse é o objetivo inflexível. Uma vez que ele seja atendido, o resto pode ser negociado.
Foi assim que o projeto de Belo Monte se tornou um monstro. De modificação em modificação, perdeu sua identidade de origem: armazenar grande volume de água, regularizando a descontínua descarga do Xingu, para produzir o máximo de energia em quatro usinas implantadas no curso do rio, e virou um Frankenstein. Só assim esse complexo hidrelétrico (com essa denominação exatamente por sua multiplicidade de barramentos) seria viável economicamente.
A redução do enorme impacto ecológico e social que teria resultou, ao final, nesse inédito desafio à engenharia e à aritmética: a hidrelétrica com a terceira maior potência nominal no mundo, 40% superior à de Tucuruí, mas a fio d’água. Isto é, sem um reservatório capaz de assegurar um fluxo de água constante para uma energia firme suficiente para sustentá-la financeiramente. É uma usina condenada ao prejuízo.
O monumental déficit de Tucuruí foi causado pelas tarifas privilegiadas de energia concedidas aos dois maiores consumidores individuais do Brasil: as fábricas de alumínio da Albrás, no Pará, e Alumar, no Maranhão. A diferença entre o custo de geração e o retorno pelo pagamento da conta dessas duas fábricas, responsáveis por quase 3% do consumo nacional de energia, custou aos cofres públicos o equivalente a US$ 2 bilhões em 20 anos.
Na vigência de Belo Monte não haverá esse encargo específico, mas a ameaça de vermelho nas contas não é menor. Sem levar em consideração eventuais manobras nos acertos entre o concessionário de energia e o consórcio construtor, sempre facilitados pelo volume de dinheiro envolvido, as mudanças de projeto já são o bastante para influir sobre os reajustes.
Qualquer pessoa minimamente iniciada na engenharia de barragem há de se espantar ao constatar que o reservatório do vertedouro principal mal dará para manter o fluxo regular de água a jusante da barragem e movimentar as turbinas bulbo de baixa potência nela a serem instaladas.
Se Belo Monte fosse só isso, índios, caboclos e ativistas podiam voltar para casa sem susto: a usina seria benéfica para a região, garantindo-lhe energia com o menor impacto possível. Nesse caso, o orçamento seria de uns 5% do atual, se muito.
O espantoso é o conjunto de canais concretados a desviar a água corrente do Xingu, numa descida de 90 metros ao longo de 40 quilômetros, até a imensa casa de força a jusante, com 18 máquinas, cada uma delas a necessitar de 750 mil litros de água por segundo para atingir a sua plena capacidade de geração. Esse volume só é atingido pelo Xingu quatro ou cinco meses por ano. No restante do tempo a vazão vai diminuindo e chega a um ponto em que se torna insuficiente para acionar uma única dessas gigantescas turbinas.
Mesmo que tudo desse certo, depois da decisão do governo de passar por cima de todas as resistências, prosseguindo na construção da usina, Belo Monte continuaria a ser um projeto deficitário (e isso sem atentar para o custo e a operação da linha de transmissão, a maior do Brasil, leiloada à parte da obra de geração). O contribuinte vai ter que pagar pela diferença que aparecerá e se manterá entre a receita e a despesa, mesmo com o subsídio abusivo do BNDES ao concessionário.
Quando o caixa do tesouro começar a sentir a hemorragia e os recursos a fundo perdido se exaurirem, a alternativa para não deixar que Belo Monte se torne uma Balbina multiplicada será construir Babaquara a montante do rio – e talvez outras barragens também. Tudo que se disse sobre não represar mais o rio desmoronará. O desastre se consumará. Pesará sobre o governo federal um estigma irreparável.
O desafio, portanto, não é apenas vencer escaramuças contínuas nessa guerra em torno da hidrelétrica. Com jeito ou usando seu poder de pressão e coação, o governo poderá ir empurrando a obra até colocá-la em funcionamento, mais cara, mais criticada. A questão principal tem um horizonte muito mais amplo, mas que pode estar sendo decidida (e mal decidida) exatamente neste momento: o que fazer da (e na) Amazônia.
As motivações dos índios e seus aliados podem estar equivocadas. Podem estar mirando o alvo errado, ou que não é o principal. Mas estão dando ao governo (e à sociedade) a oportunidade de uma revisão sincera e profunda do modo de intervir na Amazônia. O fio condutor das decisões centralizadas ainda é a doutrina de segurança nacional e um modelo de desenvolvimento ultrapassado, que se arma numa contabilidade estreita, bitoladamente econômica.
Por ela, a Amazônia deve ser ocupada e transformada para atender a demandas externas já definidas. Não se pensa na inversão do fluxo: condicionar a procura que vem de fora às aptidões internas da região, àquilo que de melhor ela tem a oferecer sem se desnaturar, sem ser violentada, sem deixar de ser Amazônia (para se reduzir a uma savana ou a florestas secundárias e exóticas, com enclaves hidrelétricos, minerais, pecuários e madeireiros).
O governo e a maioria da sociedade brasileira acham que isso é embromação, má fé, sonho ou, quando muito, utopia, poesia. A Amazônia entrou no século XXI, antes de o século existir, por oferecer a melhor alternativa de agregação volumosa de energia ao Brasil e ao mundo. Como o consumo de energia cresce mais do que a própria economia (por um fenômeno singular ou em função de manipulações numéricas), então o que se deve continuar a fazer é fomentar as atividades eletrointensivas da região, sobretudo as de geração para transmissão.
No entanto, nem no mundo empresarial está sendo assim. A busca por energias alternativas nos últimos anos criou entre alguns empresários a disposição de não ficar mais na dependência da hidreletricidade na matriz energética brasileira.
Até pequenas empresas, para o porte do setor, arremataram blocos de pesquisa de petróleo no último leilão da agência nacional, a ANP. E outras se mostram dispostas a concorrer na maior de todas as licitações de petróleo, a do pré-sal, marcada para outubro. Um desses empresários, que conquistou blocos em terra, desafiado a demonstrar a viabilidade do negócio, respondeu com uma solução simples para jazidas localizadas em lugares que não dispõem de gasodutos para se viabilizar: transformar o gás em energia elétrica no próprio lugar e transmiti-la pelas linhas de transmissão ali existentes. É uma solução tecnológica inteligente, inovadora e mais barata,
Os índios não podem ser considerados os donos da Amazônia. Sua vontade não é absoluta. Mas só um novo projeto autoritário pode ignorá-los ou simplesmente atropelá-los. Certamente uma empreitada mais racional, pluralista e democrática servirá melhor às partes.
Do seu lado, o governo aceitaria rever em profundidade o que já decidiu fazer na Amazônia. Só os intolerantes não admitem a necessidade dessa revisão, até para corrigir erros básicos que foram e estão sendo cometidos na condução de grandes projetos, em especial das hidrelétricas.
Está claro que todo processo que antecede o início das obras civis, até o licenciamento ambiental, deve ser conduzido pelo governo. Não diretamente pelo poder executivo, que deve ficar com a coordenação e supervisão dos serviços, mas pelas instituições de pesquisa do setor público e suas derivações. É o momento de não ser açodado e estar atento a tudo que diz respeito à intervenção humana no ambiente físico e humano. Só então, esclarecidas todas as questões, se for o caso, iniciará a execução do projeto.
Já as populações nativas precisam estar conscientes de que às vezes é mais fácil e cômodo combater um grande inimigo visível, como as hidrelétricas, e permanecer desatento a numerosos pequenos inimigos que causam até danos muito maiores, como fazendeiros, madeireiros e garimpeiros. Venha ou não Belo Monte, as nascentes do Xingu estão sendo destruídas, como as do Tapajós, sem provocar reação da opinião pública.
A guarda e tutela da Amazônia não podem ter origem num direito imemorial, que garante a posse dos índios sobre as terras que ocupam. A Amazônia é o paraíso do saber, da sensibilidade, da tolerância e da generosidade. Só quem dispõe desses elementos devia se arvorar a penetrar nela e, se necessário, transformá-la, mantendo-a igual – ou melhor .,.,.,.
(*) Jornalista e sociólogo
Construir a primeira grande hidrelétrica na Amazônia sob uma ditadura foi relativamente fácil, desafios de engenharia à parte. Em pouco mais de uma década a usina de Tucuruí, no rio Tocantins, no Pará, a quarta maior do mundo, saiu das pranchetas e começou a funcionar, em 1984. Esse modelo foi seguido até o início da construção da segunda grande hidrelétrica, que avançaria no rumo oeste, chegando ao rio Xingu. Ela também não devia enfrentar resistências incontornáveis. Acabaria se consumando pela força da sua própria formulação;
Na semana passada esse modelo chegou novamente ao impasse e bem próximo da exaustão. O principal canteiro de obras da usina de Belo Monte foi de novo ocupado por índios, desta vez em número ainda maior (170 deles), e dispostos a resistir ao desalojamento. Tão dispostos que simplesmente rasgaram a ordem de reintegração da posse do local pelo consórcio construtor.
Apesar de o mandado ter sido assinado por um juiz federal, Sérgio Wolney de Oliveira Guedes, da subseção judicial de Altamira, os índios desprezaram o documento. Depois de o destruírem, cantaram e dançaram para reafirmar sua decisão de se manter no sítio Pimental, sob o cerco de tropa militar e da polícia.
É pouco provável que qualquer agrupamento de não-índios ousasse tanto. Mas aqueles que voltaram pela segunda vez em maio a interromper as obras da hidrelétrica tinham motivos reforçados para essa atitude. Os munduruku, os mais numerosos, tinham visto um dos seus integrantes ser morto durante escaramuça (ainda não completamente elucidada) mais a oeste ainda, no rio Tapajós. A Força Nacional decidiu investir contra os munduruku que tentavam impedir os trabalhos preliminares visando uma nova usina de grande porte. Houve reação, choque e violência.
Além desse precedente em sua própria terra, os índios estavam também sensibilizados pelo conflito que irrompeu durante outro cumprimento de mandado judicial, em Mato Grosso do Sul, numa área de litígio entre os terena e um fazendeiro. O índio Oziel Gabriel foi morto a tiro. Para os ocupantes do canteiro de Belo Monte esse foi um estímulo à radicalização: só aceitariam negociar se fosse diretamente com o ministro Gilberto Carvalho, chefe da Secretaria-Geral da Presidência da República. Não em Brasília, como ele queria: no Xingu mesmo.
Depois de conversas tensas, aceitaram ir até o ministro, com quem acertaram audiência para esta terça-feira, 4. Aceitaram que os serviços no canteiro fossem retomados, sem deixar o local. A expectativa foi transferida para a reunião na capital federal. Os índios querem que a construção no Xingu e o início das obras do complexo hidrelétrico do Tapajós sejam condicionados a ouvi-los e obter-lhes a aprovação. Pela legislação, essa audiência prévia tem caráter consultivo e não deliberativo.
A grande maioria da população brasileira apoiaria também uma radicalização do governo, convencida que os índios violaram a lei, abusaram dos seus direitos e ultrapassaram os limites do bom senso. A minoria é que se posiciona em favor da causa indígena, atribuindo-lhe prioridade sobre os sempre lembrados objetivos do desenvolvimento (e mesmo da segurança) nacional.
Mesmo contando com o apoio da maioria, o governo não pode seguir-lhe as sugestões apenas por isso. Diante do estado emocional dos índios, um confronto em Belo Monte pode se tornar mais sangrento do que o da Terra Indígena Buriti, em Mato Grosso do Sul, de raízes mais remotas. A deliberação sobre o que fazer não é fácil. Acostumado à política dos fatos consumados da ditadura, o Brasil ainda não sabe encarar corretamente as minorias na democracia. A tendência mais evidente é fazê-las se curvar a determinações superiores.
A sociedade brasileira não pode permitir que o governo exerça o monopólio da decisão diante desse impasse. De um lado, não se pode deixar levar pelo canto da sereia do bom selvagem. Os índios, mesmo tão amplamente minoritários, nem por isso devem ser desconsiderados. Também são podem ser tidos por donos da verdade. É preciso analisar a situação na perspectiva do bem coletivo em geral, para o qual, ao menos na Amazônia, a voz dos seus mais antigos ocupantes (e aqueles que detêm, proporcionalmente, as mais extensas áreas de terras) é fundamental, indispensável.
Os índios têm exagerado nas suas mais recentes manifestações, tanto por razões próprias quanto pelo endosso dos que os defendem de forma absoluta, sem qualquer relativização, talvez movidos por uma consciência de culpa primitiva. Mas não se pode lançar a culpa sobre os indígenas sem antes perquirir pela trajetória do projeto de Belo Monte.
Mesmo aqueles que partilham a crença na prioridade de aproveitar o potencial energético dos rios da Amazônia para suprir as necessidades nacionais, como a melhor opção dentre as várias alternativas de geração de energia nova substancial para o país, não podem deixar de atentar para fatos preocupantes, escabrosos ou alarmantes do empreendimento.
O primeiro deles é o custo da obra. Quando ficou pronto o projeto, o custo da usina foi calculado em 16 bilhões de reais. Quando a obra foi licitada, em 2010, o orçamento cresceu para R$ 19 bilhões. Dois anos depois do início da construção, passou de R$ 29 bilhões. As estimativas mais atualizadas já batem em R$ 32 bilhões.
Em menos de quatro anos a previsão de custo da hidrelétrica duplicou. Mas não ficará aí. Se outro fato não voltar a interferir sobre o valor, as interrupções causadas pelas manifestações de protesto influirão na majoração. Desde o seu início, as obras foram paralisadas por 15 invasões e 16 dias de greve, que contribuíram para atrasar em quase um ano o cronograma (sem contar a ocupação atual).
Aí entra um fator complicador no cálculo entre o dano e sua compensação. O efeito pode induzir ressarcimento maior do que a perda, graças aos termos do seguro. O que faz lembrar uma máxima de Bertolt Brecht (melhor do que assaltar um banco é fundar um) ignorada pelos grupos da luta armada contra a ditadura: quanto mais assaltavam agências bancárias, provocando a condenação da população, mais lucros davam aos bancos.
A primeira suspeita em relação a esse crescimento tão significativo e rápido do orçamento de Belo Monte é de corrupção. Só retrospectivamente se teve uma ideia mais clara da influência que o superfaturamento e outras manobras alistaras tiveram nos reajustes de Tucuruí, que começou com previsão de 2,1 bilhões de dólares e, ao final, passou de US$ 10 bilhões (valor não atualizado).
As mudanças societárias e de gestão nas obras de Belo Monte ajudaram muito a fortalecer essa desconfiança, que se transformou automaticamente em certeza para aqueles menos afeitos a provar o que proclamam como verdade.
Os empreiteiros, que a princípio estavam dispostos a bancar a construção da usina e operá-la, logo mudaram de posição. Abandonaram a concessionária de energia vencedora do leilão e assumiram o lugar – sempre privilegiado – de construtores da grande obra, sua especialidade e sua principal fonte de faturamento. Seu lugar foi ocupado, a toque de caixa, pelos fundos de pensão e empresas energéticas federais. A troca sugere a transferência para o tesouro nacional dos encargos (e prejuízos) de uma obra ainda com ponderável margem de incerteza.
Belo Monte foi concebida ainda pela ditadura, que, no eclipse do último governo militar, o do general João Figueiredo, inaugurou Tucuruí. Seu encaminhamento foi interrompido, ao final do não menos melancólico governo do atual senador José Sarney, pela grande manifestação de protesto do I Encontro dos Povos Indígenas de Altamira, em 1989.
As instituições internacionais, que financiariam e avalizariam o empreendimento, recuaram. Diz-se que sensibilizadas pela reação dos índios. Mas pode-se admitir também que aproveitando essa circunstância para se desvencilhar de uma parceria que as incomodava, por vários motivos, inclusive geopolíticos.
Adversários e substitutos do regime anterior, os governos democráticos têm com ele, em relação à Amazônia, a identidade do desenvolvimentismo. Para a esquerda no poder, marxista ou não, o primitivo é considerado um obstáculo a superar para poder alcançar a modernidade e suas derivações alternativas. São mais sensíveis às causas da minoria e gostariam de contemporizar com as divergências para manter sua imagem “progressista”, mas essa maior tolerância, comparativamente ao que antes se chamava de direita, não significa acatamento ao diverso. No entanto, acarreta consequências de várias ordens.
Os governos Sarney, Collor, Itamar, FHC, Lula e Dilma nunca esconderam seu firme propósito de continuar a construir hidrelétricas nos rios de maior potencial energético da Amazônia e transferir grandes blocos de energia por extensas linhas de transmissão para os maiores centros consumidores do país. Esse é o objetivo inflexível. Uma vez que ele seja atendido, o resto pode ser negociado.
Foi assim que o projeto de Belo Monte se tornou um monstro. De modificação em modificação, perdeu sua identidade de origem: armazenar grande volume de água, regularizando a descontínua descarga do Xingu, para produzir o máximo de energia em quatro usinas implantadas no curso do rio, e virou um Frankenstein. Só assim esse complexo hidrelétrico (com essa denominação exatamente por sua multiplicidade de barramentos) seria viável economicamente.
A redução do enorme impacto ecológico e social que teria resultou, ao final, nesse inédito desafio à engenharia e à aritmética: a hidrelétrica com a terceira maior potência nominal no mundo, 40% superior à de Tucuruí, mas a fio d’água. Isto é, sem um reservatório capaz de assegurar um fluxo de água constante para uma energia firme suficiente para sustentá-la financeiramente. É uma usina condenada ao prejuízo.
O monumental déficit de Tucuruí foi causado pelas tarifas privilegiadas de energia concedidas aos dois maiores consumidores individuais do Brasil: as fábricas de alumínio da Albrás, no Pará, e Alumar, no Maranhão. A diferença entre o custo de geração e o retorno pelo pagamento da conta dessas duas fábricas, responsáveis por quase 3% do consumo nacional de energia, custou aos cofres públicos o equivalente a US$ 2 bilhões em 20 anos.
Na vigência de Belo Monte não haverá esse encargo específico, mas a ameaça de vermelho nas contas não é menor. Sem levar em consideração eventuais manobras nos acertos entre o concessionário de energia e o consórcio construtor, sempre facilitados pelo volume de dinheiro envolvido, as mudanças de projeto já são o bastante para influir sobre os reajustes.
Qualquer pessoa minimamente iniciada na engenharia de barragem há de se espantar ao constatar que o reservatório do vertedouro principal mal dará para manter o fluxo regular de água a jusante da barragem e movimentar as turbinas bulbo de baixa potência nela a serem instaladas.
Se Belo Monte fosse só isso, índios, caboclos e ativistas podiam voltar para casa sem susto: a usina seria benéfica para a região, garantindo-lhe energia com o menor impacto possível. Nesse caso, o orçamento seria de uns 5% do atual, se muito.
O espantoso é o conjunto de canais concretados a desviar a água corrente do Xingu, numa descida de 90 metros ao longo de 40 quilômetros, até a imensa casa de força a jusante, com 18 máquinas, cada uma delas a necessitar de 750 mil litros de água por segundo para atingir a sua plena capacidade de geração. Esse volume só é atingido pelo Xingu quatro ou cinco meses por ano. No restante do tempo a vazão vai diminuindo e chega a um ponto em que se torna insuficiente para acionar uma única dessas gigantescas turbinas.
Mesmo que tudo desse certo, depois da decisão do governo de passar por cima de todas as resistências, prosseguindo na construção da usina, Belo Monte continuaria a ser um projeto deficitário (e isso sem atentar para o custo e a operação da linha de transmissão, a maior do Brasil, leiloada à parte da obra de geração). O contribuinte vai ter que pagar pela diferença que aparecerá e se manterá entre a receita e a despesa, mesmo com o subsídio abusivo do BNDES ao concessionário.
Quando o caixa do tesouro começar a sentir a hemorragia e os recursos a fundo perdido se exaurirem, a alternativa para não deixar que Belo Monte se torne uma Balbina multiplicada será construir Babaquara a montante do rio – e talvez outras barragens também. Tudo que se disse sobre não represar mais o rio desmoronará. O desastre se consumará. Pesará sobre o governo federal um estigma irreparável.
O desafio, portanto, não é apenas vencer escaramuças contínuas nessa guerra em torno da hidrelétrica. Com jeito ou usando seu poder de pressão e coação, o governo poderá ir empurrando a obra até colocá-la em funcionamento, mais cara, mais criticada. A questão principal tem um horizonte muito mais amplo, mas que pode estar sendo decidida (e mal decidida) exatamente neste momento: o que fazer da (e na) Amazônia.
As motivações dos índios e seus aliados podem estar equivocadas. Podem estar mirando o alvo errado, ou que não é o principal. Mas estão dando ao governo (e à sociedade) a oportunidade de uma revisão sincera e profunda do modo de intervir na Amazônia. O fio condutor das decisões centralizadas ainda é a doutrina de segurança nacional e um modelo de desenvolvimento ultrapassado, que se arma numa contabilidade estreita, bitoladamente econômica.
Por ela, a Amazônia deve ser ocupada e transformada para atender a demandas externas já definidas. Não se pensa na inversão do fluxo: condicionar a procura que vem de fora às aptidões internas da região, àquilo que de melhor ela tem a oferecer sem se desnaturar, sem ser violentada, sem deixar de ser Amazônia (para se reduzir a uma savana ou a florestas secundárias e exóticas, com enclaves hidrelétricos, minerais, pecuários e madeireiros).
O governo e a maioria da sociedade brasileira acham que isso é embromação, má fé, sonho ou, quando muito, utopia, poesia. A Amazônia entrou no século XXI, antes de o século existir, por oferecer a melhor alternativa de agregação volumosa de energia ao Brasil e ao mundo. Como o consumo de energia cresce mais do que a própria economia (por um fenômeno singular ou em função de manipulações numéricas), então o que se deve continuar a fazer é fomentar as atividades eletrointensivas da região, sobretudo as de geração para transmissão.
No entanto, nem no mundo empresarial está sendo assim. A busca por energias alternativas nos últimos anos criou entre alguns empresários a disposição de não ficar mais na dependência da hidreletricidade na matriz energética brasileira.
Até pequenas empresas, para o porte do setor, arremataram blocos de pesquisa de petróleo no último leilão da agência nacional, a ANP. E outras se mostram dispostas a concorrer na maior de todas as licitações de petróleo, a do pré-sal, marcada para outubro. Um desses empresários, que conquistou blocos em terra, desafiado a demonstrar a viabilidade do negócio, respondeu com uma solução simples para jazidas localizadas em lugares que não dispõem de gasodutos para se viabilizar: transformar o gás em energia elétrica no próprio lugar e transmiti-la pelas linhas de transmissão ali existentes. É uma solução tecnológica inteligente, inovadora e mais barata,
Os índios não podem ser considerados os donos da Amazônia. Sua vontade não é absoluta. Mas só um novo projeto autoritário pode ignorá-los ou simplesmente atropelá-los. Certamente uma empreitada mais racional, pluralista e democrática servirá melhor às partes.
Do seu lado, o governo aceitaria rever em profundidade o que já decidiu fazer na Amazônia. Só os intolerantes não admitem a necessidade dessa revisão, até para corrigir erros básicos que foram e estão sendo cometidos na condução de grandes projetos, em especial das hidrelétricas.
Está claro que todo processo que antecede o início das obras civis, até o licenciamento ambiental, deve ser conduzido pelo governo. Não diretamente pelo poder executivo, que deve ficar com a coordenação e supervisão dos serviços, mas pelas instituições de pesquisa do setor público e suas derivações. É o momento de não ser açodado e estar atento a tudo que diz respeito à intervenção humana no ambiente físico e humano. Só então, esclarecidas todas as questões, se for o caso, iniciará a execução do projeto.
Já as populações nativas precisam estar conscientes de que às vezes é mais fácil e cômodo combater um grande inimigo visível, como as hidrelétricas, e permanecer desatento a numerosos pequenos inimigos que causam até danos muito maiores, como fazendeiros, madeireiros e garimpeiros. Venha ou não Belo Monte, as nascentes do Xingu estão sendo destruídas, como as do Tapajós, sem provocar reação da opinião pública.
A guarda e tutela da Amazônia não podem ter origem num direito imemorial, que garante a posse dos índios sobre as terras que ocupam. A Amazônia é o paraíso do saber, da sensibilidade, da tolerância e da generosidade. Só quem dispõe desses elementos devia se arvorar a penetrar nela e, se necessário, transformá-la, mantendo-a igual – ou melhor .,.,.,.
(*) Jornalista e sociólogo
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