Leandro Fortes (*)
Recentemente, pedi à promotora Alessandra Queiroga, do Ministério Público do Distrito Federal, que me enviasse alguns textos sobre as discussões em torno da PEC 37, que, uma vez aprovada, irá impedir o MP - além de outros órgãos governamentais, como o COAF e a Receita Federal - de fazer investigações. Estas, pois, passariam a ser exclusivas das polícias judiciárias (Civil, nos estados, Federal, na União).
Pedi os textos porque tenho fontes dos dois lados, no MP e na polícia, há muitos anos, dentro e fora de Brasília. Tenho críticas à atuação de ambos, mas não há como negar que a parceria entre promotores, procuradores e policiais está na origem do que melhor já se produziu em termos de combate ao crime no Brasil, sobretudo contra a corrupção de agentes públicos. A meu ver, a PEC 37, com o intuito de coibir abusos de um lado, irá fazer com que o outro se sobrecarregue sem ter autonomia e capacidade para tal.
A promotora Alessandra me enviou o texto abaixo que, com a autorização dela, reproduzo aqui. É um desabafo pessoal e, ao mesmo tempo, um alerta cheio de razões e sensibilidades de uma profissional com duas décadas de experiência no combate ao crime no Distrito Federal. E se você levar em conta que tivemos quatro mandatos de Joaquim Roriz e um de José Roberto Arruda no DF, vai entender muito bem sobre o quê ela está falando.
Diz Alessandra:
"Estou fazendo um depoimento para chamar a atenção de meus amigos presenciais e virtuais. O assunto é sério demais e, pela primeira vez, gostaria de realmente ver uma funcionalidade, que não a de satisfação individual, para a minha participação em rede social.
"Se a gente não se mobilizar, com urgência, vai ser aprovada uma modificação na nossa Constituição, através de uma emenda chamada PEC 37, que vai acabar com o sentido do Ministério Público.
"Ano que vem, faço 42 anos e 20 anos de Ministério Público. Nesse tempo todo, em que vivi o auge da minha juventude, posso dizer, sem medo, que o que fiz de melhor foi investigar. Investigar corrupção, desvio de dinheiro público, combinação prévia em licitação, nepotismo, cabides de emprego, torturas, milícias, enfim, investiguei tudo o que a polícia não queria ou não podia investigar. E meu trabalho não foi em vão – pelo menos é o que creio.
"Tenho que abrir um parágrafo específico para os heróis policiais que eu conheço. E realmente não são poucos. A Polícia tem que ser cada vez mais aparelhada para investigar e tem que ter nosso apoio. Os policiais são treinados para combater e investigar todo o tipo de crime. Mas, sério mesmo, não pra investigar as pessoas que são responsáveis pelos grandes crimes, os agentes públicos e políticos. Os policiais, por mais abnegados que sejam, tem que velar pela sua carreira profissional (e, consequentemente, familiar). Eles não têm autonomia. É só isso. Sem autonomia, não se investiga. Ponto. Sem mais. Queria que algum agente da polícia judiciária me contestasse, entabulasse um diálogo. É verdade, posso dizer com conhecimento de causa: é quase impossível investigar sem inamovibilidade, sem garantias e prerrogativas.
"Para os que são de Brasília, lembro que as maiores investigações daqui foram feitas por promotores e procuradores de justiça, bem como por procuradores da república. Testemunhei investigações que afastaram a responsabilidade dos chamados “laranjas”, alcançando os verdadeiros grileiros do DF. Testemunhei o combate ao desvio de mais de 5 bilhões de reais que aconteceu no Instituto Candango de Solidariedade; vi o Roriz caindo por causa da chamada “ Bezerra de Ouro”; vi a caixa de pandora mandando embora o Arruda e o seu grupo. Vi também a operação Aquarela, que prendeu o presidente do BRB e um empresário envolvido em fraudes, que manipulava e desviava uma fortuna que a gente normal nem consegue imaginar, embora o dinheiro fosse nosso, fosse público. Enfim, vi causas com relação às quais nós do Ministério Público investigamos e demos o nosso melhor e que NUNCA, NUNCA, poderiam ter sido investigadas pela policia. Os policiais em geral são muito bons, mas não são kamikazes. Muito pelo contrário. A polícia, mesmo que quisesse, não poderia investigar com independências, porque é subordinada ao poder executivo. Os delegados chefes são escolhidos em razão do alinhamento político com o chefe do executivo, e não em razão de sua bravura ou persistência. São gente armada e por isso devem obediência, respeito à hierarquia.
"Nós membros do Ministério Público temos independência total de investigação, não podemos ser removidos para outra promotoria quando estamos incomodando. Nós não ganhamos mais ou menos por produtividade. Nosso salário é fixo, público. Não podemos nos candidatar a cargo nenhum, não podemos advogar, não podemos ser donos de empresas, ou ter outro emprego que não o de professor.
"Posso garantir que nosso trabalho é vital pra nossa sociedade. Se aprovada essa mudança na Constituição, nós não poderemos tomar depoimento ou começar um procedimento de investigação, se, por exemplo, um cidadão nos procurar para denunciar a existência de uma milícia, com participação de policiais; ou se quiser delatar um esquema gigantesco de corrupção. Se eu ouvi-lo, se tomara depoimento, se buscar informações sobre uma licitação previamente combinada, se quiser saber o nome dos policiais que estão lotados em determinado setor, enfim, se eu fizer qualquer ato considerado de investigação, a prova produzida vai ser considerada ilícita e todo o processo pode ser anulado. O que eu teria que fazer é mandar essa pessoa ir à polícia e contar esse esquema. Se envolver algum político, algum servidor do Executivo, o policial vai conseguir investigar? O que vocês acham? Não, não vai. Nada vai ser investigado e nós, promotores, auditores, procuradores, não poderemos também. Quem vai então?
"E quem diz que esse mesmo cidadão vai ter coragem de buscar a polícia para denunciar policiais, por exemplo? A aprovação desta norma absurda está tão perto, tão perigosamente presente, que demoramos a acreditar que os deputados e senadores teriam a coragem de bancar um retrocesso como esse. Mas fomos atrás dos congressistas e, adivinhem... São enormes as chances de essa mudança acontecer. Nossa única esperança é que as pessoas, a sociedade como um todo, diga que não aceita isso, que nós somos importantes, que não queremos só sermos burocratas, que queremos fazer valer nosso salário.
"Por favor, prestem atenção nesse assunto. Estamos vendo uma coisa horrível acontecendo e a sua importância se perdendo no ‘juridiquês’ e, sério, não se trata disso. Trata-se de um golpe contra todos nós que queremos um país livre da corrupção, da miséria, da tortura, de todo o mal que juramos combater. Queria me colocar à disposição pra discutir, pra tratar de qualquer dúvida, de qualquer sombra que faça com que se pense que o assunto é muito complexo para merecer engajamento.
"Não, não é. É simples. É um golpe.
"Eu podia achar boa a mudança porque, na prática, continuaria a ganhar o mesmo salário e ter a décima parte do meu trabalho. Mas, talvez por algum azar, eu me importo, quero fazer o meu melhor e quero sentir que os últimos vinte anos da minha vida não foram em vão.
"Ajudem amigos, prestem atenção no tema, compartilhem!
Grande abraço!"
(*) Jornalista, Professor e Escritor
Recentemente, pedi à promotora Alessandra Queiroga, do Ministério Público do Distrito Federal, que me enviasse alguns textos sobre as discussões em torno da PEC 37, que, uma vez aprovada, irá impedir o MP - além de outros órgãos governamentais, como o COAF e a Receita Federal - de fazer investigações. Estas, pois, passariam a ser exclusivas das polícias judiciárias (Civil, nos estados, Federal, na União).
Pedi os textos porque tenho fontes dos dois lados, no MP e na polícia, há muitos anos, dentro e fora de Brasília. Tenho críticas à atuação de ambos, mas não há como negar que a parceria entre promotores, procuradores e policiais está na origem do que melhor já se produziu em termos de combate ao crime no Brasil, sobretudo contra a corrupção de agentes públicos. A meu ver, a PEC 37, com o intuito de coibir abusos de um lado, irá fazer com que o outro se sobrecarregue sem ter autonomia e capacidade para tal.
A promotora Alessandra me enviou o texto abaixo que, com a autorização dela, reproduzo aqui. É um desabafo pessoal e, ao mesmo tempo, um alerta cheio de razões e sensibilidades de uma profissional com duas décadas de experiência no combate ao crime no Distrito Federal. E se você levar em conta que tivemos quatro mandatos de Joaquim Roriz e um de José Roberto Arruda no DF, vai entender muito bem sobre o quê ela está falando.
Diz Alessandra:
"Estou fazendo um depoimento para chamar a atenção de meus amigos presenciais e virtuais. O assunto é sério demais e, pela primeira vez, gostaria de realmente ver uma funcionalidade, que não a de satisfação individual, para a minha participação em rede social.
"Se a gente não se mobilizar, com urgência, vai ser aprovada uma modificação na nossa Constituição, através de uma emenda chamada PEC 37, que vai acabar com o sentido do Ministério Público.
"Ano que vem, faço 42 anos e 20 anos de Ministério Público. Nesse tempo todo, em que vivi o auge da minha juventude, posso dizer, sem medo, que o que fiz de melhor foi investigar. Investigar corrupção, desvio de dinheiro público, combinação prévia em licitação, nepotismo, cabides de emprego, torturas, milícias, enfim, investiguei tudo o que a polícia não queria ou não podia investigar. E meu trabalho não foi em vão – pelo menos é o que creio.
"Tenho que abrir um parágrafo específico para os heróis policiais que eu conheço. E realmente não são poucos. A Polícia tem que ser cada vez mais aparelhada para investigar e tem que ter nosso apoio. Os policiais são treinados para combater e investigar todo o tipo de crime. Mas, sério mesmo, não pra investigar as pessoas que são responsáveis pelos grandes crimes, os agentes públicos e políticos. Os policiais, por mais abnegados que sejam, tem que velar pela sua carreira profissional (e, consequentemente, familiar). Eles não têm autonomia. É só isso. Sem autonomia, não se investiga. Ponto. Sem mais. Queria que algum agente da polícia judiciária me contestasse, entabulasse um diálogo. É verdade, posso dizer com conhecimento de causa: é quase impossível investigar sem inamovibilidade, sem garantias e prerrogativas.
"Para os que são de Brasília, lembro que as maiores investigações daqui foram feitas por promotores e procuradores de justiça, bem como por procuradores da república. Testemunhei investigações que afastaram a responsabilidade dos chamados “laranjas”, alcançando os verdadeiros grileiros do DF. Testemunhei o combate ao desvio de mais de 5 bilhões de reais que aconteceu no Instituto Candango de Solidariedade; vi o Roriz caindo por causa da chamada “ Bezerra de Ouro”; vi a caixa de pandora mandando embora o Arruda e o seu grupo. Vi também a operação Aquarela, que prendeu o presidente do BRB e um empresário envolvido em fraudes, que manipulava e desviava uma fortuna que a gente normal nem consegue imaginar, embora o dinheiro fosse nosso, fosse público. Enfim, vi causas com relação às quais nós do Ministério Público investigamos e demos o nosso melhor e que NUNCA, NUNCA, poderiam ter sido investigadas pela policia. Os policiais em geral são muito bons, mas não são kamikazes. Muito pelo contrário. A polícia, mesmo que quisesse, não poderia investigar com independências, porque é subordinada ao poder executivo. Os delegados chefes são escolhidos em razão do alinhamento político com o chefe do executivo, e não em razão de sua bravura ou persistência. São gente armada e por isso devem obediência, respeito à hierarquia.
"Nós membros do Ministério Público temos independência total de investigação, não podemos ser removidos para outra promotoria quando estamos incomodando. Nós não ganhamos mais ou menos por produtividade. Nosso salário é fixo, público. Não podemos nos candidatar a cargo nenhum, não podemos advogar, não podemos ser donos de empresas, ou ter outro emprego que não o de professor.
"Posso garantir que nosso trabalho é vital pra nossa sociedade. Se aprovada essa mudança na Constituição, nós não poderemos tomar depoimento ou começar um procedimento de investigação, se, por exemplo, um cidadão nos procurar para denunciar a existência de uma milícia, com participação de policiais; ou se quiser delatar um esquema gigantesco de corrupção. Se eu ouvi-lo, se tomara depoimento, se buscar informações sobre uma licitação previamente combinada, se quiser saber o nome dos policiais que estão lotados em determinado setor, enfim, se eu fizer qualquer ato considerado de investigação, a prova produzida vai ser considerada ilícita e todo o processo pode ser anulado. O que eu teria que fazer é mandar essa pessoa ir à polícia e contar esse esquema. Se envolver algum político, algum servidor do Executivo, o policial vai conseguir investigar? O que vocês acham? Não, não vai. Nada vai ser investigado e nós, promotores, auditores, procuradores, não poderemos também. Quem vai então?
"E quem diz que esse mesmo cidadão vai ter coragem de buscar a polícia para denunciar policiais, por exemplo? A aprovação desta norma absurda está tão perto, tão perigosamente presente, que demoramos a acreditar que os deputados e senadores teriam a coragem de bancar um retrocesso como esse. Mas fomos atrás dos congressistas e, adivinhem... São enormes as chances de essa mudança acontecer. Nossa única esperança é que as pessoas, a sociedade como um todo, diga que não aceita isso, que nós somos importantes, que não queremos só sermos burocratas, que queremos fazer valer nosso salário.
"Por favor, prestem atenção nesse assunto. Estamos vendo uma coisa horrível acontecendo e a sua importância se perdendo no ‘juridiquês’ e, sério, não se trata disso. Trata-se de um golpe contra todos nós que queremos um país livre da corrupção, da miséria, da tortura, de todo o mal que juramos combater. Queria me colocar à disposição pra discutir, pra tratar de qualquer dúvida, de qualquer sombra que faça com que se pense que o assunto é muito complexo para merecer engajamento.
"Não, não é. É simples. É um golpe.
"Eu podia achar boa a mudança porque, na prática, continuaria a ganhar o mesmo salário e ter a décima parte do meu trabalho. Mas, talvez por algum azar, eu me importo, quero fazer o meu melhor e quero sentir que os últimos vinte anos da minha vida não foram em vão.
"Ajudem amigos, prestem atenção no tema, compartilhem!
Grande abraço!"
(*) Jornalista, Professor e Escritor
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