Ricardo Noblat (*)
Tarde da noite da última terça-feira, Renan Calheiros (PMDB-AL) conversava com amigos na residência oficial do presidente do Senado, no Lago Sul, em Brasília, e ainda atendia ou disparava telefonemas.
Àquela altura parecia convencido em definitivo de que só lhe restava a opção de empurrar goela abaixo do Senado a Medida Provisória 595, que estabelece um novo marco regulatório para o setor portuário.
Vez por outra, porém, interessado em sondar o estado de ânimo do seu interlocutor, comentava como se ainda hesitasse sobre o que fazer: "Se eu rasgar o acordo estarei expondo o Senado à desmoralização".
Havia um acordo firmado em 2003 pelos líderes de todos os partidos sob as bênçãos do então presidente do Senado, José Sarney. Medida Provisória só seria aprovada ali depois de pelo menos duas sessões de discussão.
Sem truques, duas sessões equivalem a dois dias. Não é o suficiente para que se examinem assuntos complexos e que envolvam variados e poderosos interesses. Mesmo assim é melhor do que votar no escuro.
Medida Provisória é instrumento por meio do qual o presidente da República legisla e obriga o Congresso a agir com rapidez. Entra em vigor de imediato. Cabe ao Congresso referendá-la ou não.
O acordo de 2003 fora quebrado uma semana antes para a aprovação de duas medidas que beneficiariam os inscritos no Bolsa Família.
"A oposição não pode ficar contra os pobres", argumentou José Agripino Maia (DEM-RN). (A oposição tem forte sentimento de culpa em relação aos pobres.)
Os líderes de todos os partidos concordaram com Agripino. E os do PMDB e do governo se apressaram em repetir: "Isso jamais significará a abertura de precedente".
O acordo só seria quebrado daquela vez.
Nada mais falso.
Ou melhor: mais falso somente o ar de pesar de Renan quando perto do meio-dia da quinta-feira, apenas duas horas depois de a Câmara dos Deputados ter encerrado a votação da Medida Provisória 595, e a 12 horas do fim do prazo para que ela caducasse se não fosse votada pelo Senado, ele disse como se sua palavra valesse de fato alguma coisa:
- Esta será a última vez que sob a minha presidência procederemos assim.
(Segure o riso!)
Você compactuaria com algo que julgasse de público uma "aberração"?
No Dicionário do Aurélio, aberração que dizer anomalia, distorção, desatino.
E com algo simplesmente "deplorável", você compactuaria?
Deplorável é igual a detestável, lamentável, abominável.
Só mais uma: e com algo "constrangedor"?
Constranger tem a ver com tolher a liberdade, coagir, violentar, compelir, obrigar pela força.
Sim, foi Renan que chamou de "aberração" o ato de o Senado votar o novo marco regulatório dos portos sem discuti-lo pelo tempo necessário.
Foi também Renan que tachou de "deplorável" o que ele mesmo se dispôs a patrocinar. Por fim, foi Renan que reconheceu o "constrangimento" do Senado em se comportar não como manda a lei, mas como queria a presidente da República com sua pressa, maus modos e incompetência para fazer política.
A Medida Provisória poderia ter dado lugar a um projeto de lei para votação em regime de urgência - não mais do que 45 dias.
A presidente dispensou a colaboração do Senado. Por sua vez, o Senado não se incomodou com sua falta de relevância.
O Senado rendeu-se e covardemente abdicou dos seus poderes. Por que o fez?
Ora, ora, ora...
Poucos entre os 81 senadores são homens reconhecidamente decentes. A política corrompeu-se, virou um lucrativo negócio que movimenta milhões de reais.
A propósito, sobre isso Lula deu testemunho em dois momentos - há 30 anos quando acusou o Congresso de abrigar 300 picaretas; e há uma semana ao falar aos moços. Disse então:
- O político ideal que vocês desejam, aquele cara sabido, aquele cara probo, irretocável do ponto de vista do comportamento ético e moral, aquele político que a imprensa vende que existe, mas que não existe..."
E completou:
- Quem sabe esteja dentro de vocês.
Porque dentro dele também não está.
(*) Jornalista é responsável pelo Blog do Noblat diariamente nas páginas do jornal O Globo
Tarde da noite da última terça-feira, Renan Calheiros (PMDB-AL) conversava com amigos na residência oficial do presidente do Senado, no Lago Sul, em Brasília, e ainda atendia ou disparava telefonemas.
Àquela altura parecia convencido em definitivo de que só lhe restava a opção de empurrar goela abaixo do Senado a Medida Provisória 595, que estabelece um novo marco regulatório para o setor portuário.
Vez por outra, porém, interessado em sondar o estado de ânimo do seu interlocutor, comentava como se ainda hesitasse sobre o que fazer: "Se eu rasgar o acordo estarei expondo o Senado à desmoralização".
Havia um acordo firmado em 2003 pelos líderes de todos os partidos sob as bênçãos do então presidente do Senado, José Sarney. Medida Provisória só seria aprovada ali depois de pelo menos duas sessões de discussão.
Sem truques, duas sessões equivalem a dois dias. Não é o suficiente para que se examinem assuntos complexos e que envolvam variados e poderosos interesses. Mesmo assim é melhor do que votar no escuro.
Medida Provisória é instrumento por meio do qual o presidente da República legisla e obriga o Congresso a agir com rapidez. Entra em vigor de imediato. Cabe ao Congresso referendá-la ou não.
O acordo de 2003 fora quebrado uma semana antes para a aprovação de duas medidas que beneficiariam os inscritos no Bolsa Família.
"A oposição não pode ficar contra os pobres", argumentou José Agripino Maia (DEM-RN). (A oposição tem forte sentimento de culpa em relação aos pobres.)
Os líderes de todos os partidos concordaram com Agripino. E os do PMDB e do governo se apressaram em repetir: "Isso jamais significará a abertura de precedente".
O acordo só seria quebrado daquela vez.
Nada mais falso.
Ou melhor: mais falso somente o ar de pesar de Renan quando perto do meio-dia da quinta-feira, apenas duas horas depois de a Câmara dos Deputados ter encerrado a votação da Medida Provisória 595, e a 12 horas do fim do prazo para que ela caducasse se não fosse votada pelo Senado, ele disse como se sua palavra valesse de fato alguma coisa:
- Esta será a última vez que sob a minha presidência procederemos assim.
(Segure o riso!)
Você compactuaria com algo que julgasse de público uma "aberração"?
No Dicionário do Aurélio, aberração que dizer anomalia, distorção, desatino.
E com algo simplesmente "deplorável", você compactuaria?
Deplorável é igual a detestável, lamentável, abominável.
Só mais uma: e com algo "constrangedor"?
Constranger tem a ver com tolher a liberdade, coagir, violentar, compelir, obrigar pela força.
Sim, foi Renan que chamou de "aberração" o ato de o Senado votar o novo marco regulatório dos portos sem discuti-lo pelo tempo necessário.
Foi também Renan que tachou de "deplorável" o que ele mesmo se dispôs a patrocinar. Por fim, foi Renan que reconheceu o "constrangimento" do Senado em se comportar não como manda a lei, mas como queria a presidente da República com sua pressa, maus modos e incompetência para fazer política.
A Medida Provisória poderia ter dado lugar a um projeto de lei para votação em regime de urgência - não mais do que 45 dias.
A presidente dispensou a colaboração do Senado. Por sua vez, o Senado não se incomodou com sua falta de relevância.
O Senado rendeu-se e covardemente abdicou dos seus poderes. Por que o fez?
Ora, ora, ora...
Poucos entre os 81 senadores são homens reconhecidamente decentes. A política corrompeu-se, virou um lucrativo negócio que movimenta milhões de reais.
A propósito, sobre isso Lula deu testemunho em dois momentos - há 30 anos quando acusou o Congresso de abrigar 300 picaretas; e há uma semana ao falar aos moços. Disse então:
- O político ideal que vocês desejam, aquele cara sabido, aquele cara probo, irretocável do ponto de vista do comportamento ético e moral, aquele político que a imprensa vende que existe, mas que não existe..."
E completou:
- Quem sabe esteja dentro de vocês.
Porque dentro dele também não está.
(*) Jornalista é responsável pelo Blog do Noblat diariamente nas páginas do jornal O Globo
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