quinta-feira, 16 de maio de 2013

Mudar de rumo e de ideia

Roberto Mangabeira Unger (*) 

Um Brasil parado? O país cresce hoje menos do que todos os outros grandes países em desenvolvimento e menos até do que os Estados Unidos. Ao marasmo quantitativo se junta o retrocesso qualitativo: subiu a parte da produção e da exportação representada por produtos pouco tocados pelo engenho humano. 

Pior do que a estagnação econômica é a situação do ensino. O Brasil ampliou o acesso à educação. Não conseguiu, porém, qualificar o ensino para capacitar os brasileiros. Prevalece enciclopedismo raso, mimético e estéril. A maior parte dos alunos que terminam a escola média mal consegue analisar textos ou manejar abstrações de qualquer espécie. 

Esses fatos revelam o esgotamento de modelo de desenvolvimento montado sobre a expansão do consumo e a exploração da natureza. Para superar tal quadro, as forças dominantes no país defendem variantes de um único caminho: a modernização conservadora. 

Tornar o Estado mais enxuto e eficaz. Simplificar a tributação, ampliar sua base e atenuar seu ônus. Gastar menos em custeio para investir mais em infraestrutura. "Flexibilizar" o mercado de trabalho. Escolarizar cada vez mais gente com maior eficiência, tratando como mal menor a primazia de quantidade sobre qualidade. Orientar a política exterior a abrir mercados para nossos produtos agropecuários. 


Se se implementassem essas e outras partes da modernização conservadora, continuaríamos a ser o que somos hoje: país efervescente, que produz e exporta bens primários, convive com desigualdades entre as maiores já vistas na história da humanidade, deixa a maior parte de seu povo desfalcada de instrumentos e de oportunidades e pouco forma gente que consegue inovar nas práticas, nas instituições e nas ideias. País no qual a maioria não tem como transformar energia humana em ação fecunda. 

O Brasil precisa de outro projeto --de produtivíssimo includente, de educação capacitadora e de democratização aprofundada. Essa alternativa contempla muitas das preocupações do projeto dominante. Altera-lhes, porém, o sentido. Sua tarefa é dar braços, asas e olhos à vitalidade brasileira. 

Em vez de buscar desenvolver o país apenas pelo lado de demanda, prioriza o lado da oferta, da inovação, das capacitações e das oportunidades. E entende a democracia como método para continuar mudando sem precisar das crises para facultar as mudanças. 

Sete conjuntos de iniciativas compõem o conteúdo dessa alternativa:

1. Preencher as condições práticas para romper, quando nos convém, com figurinos institucionais copiados. Para isso, precisamos forçar elevação da poupança, tanto privada quanto pública, e abrir canais que mobilizem a poupança de longo prazo para o investimento produtivo de longo prazo. A tributação, ainda que racionalizada, tem de permanecer alta para financiar a contribuição do Estado a nossa rebeldia. Poupança e receita garantem a margem de manobra para dar os primeiros passos em novo rumo. 

2. Levar muitas das pequenas e médias empresas, nossos agentes econômicos mais importantes, à ponta da inovação, abrindo-lhes acesso ao crédito, à tecnologia e às práticas vanguardistas. É a melhor maneira para assegurar que o paradigma produtivo que começa a se difundir nas principais economias do mundo --flexível, despadronizado, experimentalista-- se estabeleça entre nós de forma includente, não como enclave excludente. O equivalente agrícola a essa política industrial é dotar a agricultura familiar de atributos empresariais e avançar na industrialização descentralizada de nossos produtos agropecuários. 

3. Resgatar do emprego informal --quer dizer, da ilegalidade constrangedora-- metade da população economicamente ativa do país . Não basta desonerar e desburocratizar. É preciso também instrumentalizar o empreendedorismo emergente e espontâneo. Só ascenderemos no mundo se apostarmos na valorização do trabalho, na qualificação do trabalhador e do empreendedor e, portanto, na escalada de produtividade. Não temos futuro como uma China com menos gente.

4. Mudar a maneira de ensinar e de apreender. Substituir decoreba enciclopédica por ensino analítico e capacitador, com foco no que mais importa: análise verbal e análise numérica. Só ocorrerá se houver repactuação do federalismo brasileiro para reconciliar a gestão local das escolas com padrões nacionais de investimento e de qualidade. 

5. Reconstruir o sistema de saúde, que hoje subsidia, direta e indiretamente, sobretudo por meio do favor fiscal, os 20% de brasileiros com acesso aos planos privados, à custa dos 80% que dependem do SUS. Enquanto aqueles puderem lavar as mãos da sorte destes, jamais se equacionará o financiamento do sistema público. E a maioria continuará a penar nas filas e no descaso. 

6. Construir política exterior que sirva a nosso projeto de país. Unir a América do Sul em torno de agenda compartilhada, de produtivismo includente, expressa em iniciativas comuns e tangíveis. Trabalhar por ordem econômica mundial que abra espaço para nossa alternativa. (Hoje, por exemplo, o regime nascente de comércio internacional tenta engessar as inovações institucionais que nos convém. Por exemplo, proíbe, sob o rótulo de subsídios, as formas de coordenação estratégica entre governos e empresas que os países hoje ricos usaram para enriquecer.) Fazer causa comum com os Estados Unidos para nos resguardar contra o país que cada vez mais confronta nossos interesses: a China. Ela aprecia nossas terras e suas riquezas, mas não nos quer inovadores e capazes. O desafio está em reconciliar essa terceira prioridade, que nos aproxima dos americanos, com as duas primeiras, que nos afastam deles. 

7. Tratar com seriedade a defesa da nação. A modernização conservadora pretende apenas aplacar as Forças Armadas. Por que gastar dinheiro em defesa quando não há caminho nacional insurgente a defender? Se quisermos, porém, divergir, precisamos poder dizer não. Para isto, temos de desenvolver as Forças Armadas sobre a base das capacitações efetivas, da autonomia tecnológica e da participação nacional. Nossa alternativa precisa de escudo. 

Há base social para essa alternativa: aliança de interesses produtivos que reúna desde os grandes, médios e pequenos produtores até as multidões desejosas de seguir a trajetória da nova classe média. O que falta é providenciar a travessia política. 

O país arrisca assistir a campanha em que todos os candidatos à Presidência serão adeptos do projeto dominante. Os pré-candidatos de oposição, direta ou velada, estão comprometidos com a modernização conservadora. Claramente o demonstram, por palavras e por omissões, e pela natureza de seus interlocutores, conselheiros e apoios. 

E a presidente? Seu governo não rompeu --quer na prática, quer no discurso-- com o ideário hegemônico. Entretanto, por todas as razões, a começar por sua identidade política, pela dialética da aliança que sustenta seu governo e pelo efeito polarizador da campanha que se prenuncia, é de longe sua a candidatura mais apta para servir à causa da alternativa. 

Cabe a nós, cidadãos, nos organizarmos para insistir que o governo da presidenta reeleita lidere a troca de rumo. E para evitar que a campanha presidencial degenere em concurso para determinar quem, entre os candidatos, possa ser mais eficiente na modernização conservadora: agenda que não aproveita o potencial Brasil. 

Ação pública em favor da alternativa é o imperativo da hora. A maldição das gerações futuras, a que teremos entregue país apequenado, recairá sobre nós se aguardarmos para ver o que nos vão aprontar. Tratemos de propor e de construir, nós mesmos, cidadãos, outro futuro brasileiro. 

(*) Professor na Universidade Harvard (EUA), é autor do manifesto de fundação do PMDB e ativista em Rondônia. Foi ministro de Assuntos Estratégicos (governo Lula)

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