Ruy Mesquita (*)
( ARTIGO PUBLICADO EM 24/4/1998, NO CADERNO ‘1968 - DO SONHO AO PESADELO’)
Albert Camus acreditava no jornalismo como trincheira de combate político, não apenas uma correia de transmissão de notícias, muito embora esta também seja uma função nobre e importante para a vida numa sociedade democrática. Não foi à toa que ele participou da equipe de uma publicação que se tornou um ponto de referência da resistência francesa à invasão nazista, Combat.
O grande escritor franco-argelino, justamente galardoado com o Prêmio Nobel de Literatura, não viveu o suficiente para ver como a era da comunicação de massas, que reina sobre a sociedade da informação, tem atrofiado, cada vez mais, o papel combatente da imprensa, dando mais relevo à natureza meramente noticiosa dos jornais.
Neste panorama, comum em todo o planeta, o Brasil não é exceção à regra. Mas o jornal O Estado de S. Paulo é, sim, e se orgulha de sê-lo. Embora nunca tenha deixado de lado a obrigação social precípua de narrar os fatos do dia a seus leitores fiéis, este diário sempre se manteve, ele também, fiel a sua característica, adquirida desde a fundação, de arma política na luta pelo aperfeiçoamento das instituições democráticas. Fundado por abolicionistas e republicanos, desde seus tempos iniciais, quando ainda tinha no cabeçalho o título A Província de São Paulo, ele nunca abandonou a trincheira da guerra, sempre nobre, mas muitas vezes inglória, pelos princípios democráticos, que se baseiam no primado da liberdade de agir, empreender, trabalhar, se reunir e se manifestar.
Essa diferença de um jornal, entendido como arma política, e não apenas divulgador de notícias, estabelecida pelo grupo de fundadores, combatentes republicanos em pleno 2° Império, foi entendida em toda sua extensão por meu avô, Julio Mesquita, e seus descendentes, que participaram do contexto histórico nacional.
O Estado, muito mais do que um registro fiel dos fatos históricos, sempre se orgulhou de ser um ator, muitas vezes até protagonista, da História, por mais sacrifícios pessoais ou patrimoniais que esse papel pudesse implicar. O velho Julio Mesquita foi o primeiro a sofrer sacrifício pessoal, pois, em sua luta contra a frustração dos ideais republicanos na 1.ª República, acabou apoiando os movimentos revolucionários da década dos 20, o que lhe custou, em 1924, uma temporada nas prisões de Artur Bernardes.
Em nome dos ideais liberais a que sempre foi rigorosamente leal, meu pai, Julio de Mesquita Filho, amargou o exílio em 1932, depois da derrota militar da Revolução Paulista, aliás planejada na redação de O Estado de S. Paulo. Voltou ao exílio em 1938, após ter frequentado várias vezes as prisões do Estado Novo fascista, instalado pelo golpe de novembro de 1937, por se recusar a silenciar diante da explícita traição dos ideais da Revolução de 30 por seu usurpador Getúlio Vargas. Por causa disso, o jornal foi fechado e viveu um hiato administrado por esbirros do Estado Novo. A fidelidade aos mesmos ideais levou meu pai a apoiar a conspiração política e militar, chegando até a dela participar, para enfrentar a ofensiva do governo de João Goulart contra as instituições democráticas. Essa ofensiva culminou com o projeto de instalação de uma "república sindical" no País, anunciada no famoso discurso de Goulart no comício da Central do Brasil, em março de 1964.
No entanto, não demorou muito após os militares terem assumido o poder, e logo ele se convencia de que o movimento contrarrevolucionário se desviava de seu objetivo inicial, que era o de preservar as instituições democráticas. Já por ocasião da promulgação do Ato Institucional n.° 3, Julio de Mesquita Filho colocou o jornal em franca oposição ao governo Castello Branco e ao regime.
O resto é História. Que, aliás, está muito bem contada nessa exposição: a progressiva radicalização, tanto dos opositores do regime militar, à esquerda, quanto da linha dura militar, que os reprimiu. Essa exposição tem a virtude de resgatar a História do Brasil recente. Aqui estão registrados os fatos de 1968, que terminaram provocando a reação brutal dos militares da linha-dura. Estes impuseram a violência institucional. Para entender bem a época, é preciso ter presente o fato de que o movimento estudantil tinha reivindicações materiais em seu princípio e Edson Luís Souto, o estudante morto à bala num confronto com a repressão policial, nem sequer tinha posições políticas bem definidas. E deu no que deu: guerrilha, fechamento do Congresso, censura, etc.
A promulgação do Ato Institucional n.° 5, em 13 de dezembro de 1968, marcou o fim da atividade jornalística de Julio de Mesquita Filho. Seu editorial daquele dia, "Instituições em frangalhos", escolhido para encerrar esta exposição, foi o último que escreveu. A edição em que o texto foi publicado foi apreendida pela polícia da ditadura, e até o fim do regime de censura da imprensa, já no governo Geisel, aquele espaço passou a ser ocupado por versos dos Lusíadas, poema fundador de nossa língua portuguesa, de autoria de Luís de Camões.
Poucos dias após esse episódio, em janeiro de 1969, Julio de Mesquita Filho caiu doente e estou convencido de que o triunfo da linha-dura dos militares sobre os ideais originais do movimento de 1964 lhe produziu tal amargura e frustração que terminariam levando-o à morte. Quando morreu, a meu ver de desgosto por isso, meu pai era um homem idoso, mas, em seus 77 anos, não sofria dos achaques naturais da velhice. Ao contrário, era um homem moço para sua idade avançada.
Logo depois da decretação do AI-5, contudo, uma velha úlcera do duodeno, com a qual conviveu durante a vida inteira sem hostilidade de parte a parte, ressurgiu com violência, levou-o ao leito e, seis meses depois disso, à morte, em julho de 1969. Com o AI-5 e o controle do governo pela linha-dura, o regime passou a ser mais violento e explícito do que já era. O Estado de S. Paulo, como era de se esperar, estava entre suas primeiras vítimas - foi o único dos grandes jornais a ser censurado na redação, por se recusar a praticar a autocensura, como também se recusou o semanário alternativo carioca O Pasquim.
Em reconhecimento a isso, a Federação Internacional de Jornais concedeu o Prêmio Pena de Ouro da Liberdade de 1974 a meu irmão Julio de Mesquita Neto, que tinha assumido o lugar de nosso pai e passou a comandar o jornal após sua morte, em julho de 1969. Com o prêmio, a FIJ ressaltou a "corajosa e solitária luta que vem mantendo contra a censura à imprensa no Brasil".
O próprio regime militar, ao resolver partir para a abertura política, definida como uma distensão lenta, segura e gradual, reconheceu o papel histórico desempenhado pelo jornal. Pois o presidente Ernesto Geisel aproveitou a edição comemorativa do centenário da fundação do Estado, em 1975, para retirar a censura de nossa redação, anunciando, dessa forma, o fim da censura no País.
Essa consciência de que o jornal tem de cumprir sua função social de contar a verdade para seus leitores, sem abrir mão de funcionar como arma na luta política na defesa dos nobres ideais da liberdade, continua a impregnar a tinta que circula em nossas rotativas. A liberdade, antes de tudo, é o lema que corre no sangue de minha família, na luta para construir um Brasil melhor e mais justo para os nossos filhos
(*) Formado em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia da USP era Diretor do Jornal O Estado de São Paulo e que faleceu ontem em São Paulo aos 88 anos.
( ARTIGO PUBLICADO EM 24/4/1998, NO CADERNO ‘1968 - DO SONHO AO PESADELO’)
Albert Camus acreditava no jornalismo como trincheira de combate político, não apenas uma correia de transmissão de notícias, muito embora esta também seja uma função nobre e importante para a vida numa sociedade democrática. Não foi à toa que ele participou da equipe de uma publicação que se tornou um ponto de referência da resistência francesa à invasão nazista, Combat.
O grande escritor franco-argelino, justamente galardoado com o Prêmio Nobel de Literatura, não viveu o suficiente para ver como a era da comunicação de massas, que reina sobre a sociedade da informação, tem atrofiado, cada vez mais, o papel combatente da imprensa, dando mais relevo à natureza meramente noticiosa dos jornais.
Neste panorama, comum em todo o planeta, o Brasil não é exceção à regra. Mas o jornal O Estado de S. Paulo é, sim, e se orgulha de sê-lo. Embora nunca tenha deixado de lado a obrigação social precípua de narrar os fatos do dia a seus leitores fiéis, este diário sempre se manteve, ele também, fiel a sua característica, adquirida desde a fundação, de arma política na luta pelo aperfeiçoamento das instituições democráticas. Fundado por abolicionistas e republicanos, desde seus tempos iniciais, quando ainda tinha no cabeçalho o título A Província de São Paulo, ele nunca abandonou a trincheira da guerra, sempre nobre, mas muitas vezes inglória, pelos princípios democráticos, que se baseiam no primado da liberdade de agir, empreender, trabalhar, se reunir e se manifestar.
Essa diferença de um jornal, entendido como arma política, e não apenas divulgador de notícias, estabelecida pelo grupo de fundadores, combatentes republicanos em pleno 2° Império, foi entendida em toda sua extensão por meu avô, Julio Mesquita, e seus descendentes, que participaram do contexto histórico nacional.
O Estado, muito mais do que um registro fiel dos fatos históricos, sempre se orgulhou de ser um ator, muitas vezes até protagonista, da História, por mais sacrifícios pessoais ou patrimoniais que esse papel pudesse implicar. O velho Julio Mesquita foi o primeiro a sofrer sacrifício pessoal, pois, em sua luta contra a frustração dos ideais republicanos na 1.ª República, acabou apoiando os movimentos revolucionários da década dos 20, o que lhe custou, em 1924, uma temporada nas prisões de Artur Bernardes.
Em nome dos ideais liberais a que sempre foi rigorosamente leal, meu pai, Julio de Mesquita Filho, amargou o exílio em 1932, depois da derrota militar da Revolução Paulista, aliás planejada na redação de O Estado de S. Paulo. Voltou ao exílio em 1938, após ter frequentado várias vezes as prisões do Estado Novo fascista, instalado pelo golpe de novembro de 1937, por se recusar a silenciar diante da explícita traição dos ideais da Revolução de 30 por seu usurpador Getúlio Vargas. Por causa disso, o jornal foi fechado e viveu um hiato administrado por esbirros do Estado Novo. A fidelidade aos mesmos ideais levou meu pai a apoiar a conspiração política e militar, chegando até a dela participar, para enfrentar a ofensiva do governo de João Goulart contra as instituições democráticas. Essa ofensiva culminou com o projeto de instalação de uma "república sindical" no País, anunciada no famoso discurso de Goulart no comício da Central do Brasil, em março de 1964.
No entanto, não demorou muito após os militares terem assumido o poder, e logo ele se convencia de que o movimento contrarrevolucionário se desviava de seu objetivo inicial, que era o de preservar as instituições democráticas. Já por ocasião da promulgação do Ato Institucional n.° 3, Julio de Mesquita Filho colocou o jornal em franca oposição ao governo Castello Branco e ao regime.
O resto é História. Que, aliás, está muito bem contada nessa exposição: a progressiva radicalização, tanto dos opositores do regime militar, à esquerda, quanto da linha dura militar, que os reprimiu. Essa exposição tem a virtude de resgatar a História do Brasil recente. Aqui estão registrados os fatos de 1968, que terminaram provocando a reação brutal dos militares da linha-dura. Estes impuseram a violência institucional. Para entender bem a época, é preciso ter presente o fato de que o movimento estudantil tinha reivindicações materiais em seu princípio e Edson Luís Souto, o estudante morto à bala num confronto com a repressão policial, nem sequer tinha posições políticas bem definidas. E deu no que deu: guerrilha, fechamento do Congresso, censura, etc.
A promulgação do Ato Institucional n.° 5, em 13 de dezembro de 1968, marcou o fim da atividade jornalística de Julio de Mesquita Filho. Seu editorial daquele dia, "Instituições em frangalhos", escolhido para encerrar esta exposição, foi o último que escreveu. A edição em que o texto foi publicado foi apreendida pela polícia da ditadura, e até o fim do regime de censura da imprensa, já no governo Geisel, aquele espaço passou a ser ocupado por versos dos Lusíadas, poema fundador de nossa língua portuguesa, de autoria de Luís de Camões.
Poucos dias após esse episódio, em janeiro de 1969, Julio de Mesquita Filho caiu doente e estou convencido de que o triunfo da linha-dura dos militares sobre os ideais originais do movimento de 1964 lhe produziu tal amargura e frustração que terminariam levando-o à morte. Quando morreu, a meu ver de desgosto por isso, meu pai era um homem idoso, mas, em seus 77 anos, não sofria dos achaques naturais da velhice. Ao contrário, era um homem moço para sua idade avançada.
Logo depois da decretação do AI-5, contudo, uma velha úlcera do duodeno, com a qual conviveu durante a vida inteira sem hostilidade de parte a parte, ressurgiu com violência, levou-o ao leito e, seis meses depois disso, à morte, em julho de 1969. Com o AI-5 e o controle do governo pela linha-dura, o regime passou a ser mais violento e explícito do que já era. O Estado de S. Paulo, como era de se esperar, estava entre suas primeiras vítimas - foi o único dos grandes jornais a ser censurado na redação, por se recusar a praticar a autocensura, como também se recusou o semanário alternativo carioca O Pasquim.
Em reconhecimento a isso, a Federação Internacional de Jornais concedeu o Prêmio Pena de Ouro da Liberdade de 1974 a meu irmão Julio de Mesquita Neto, que tinha assumido o lugar de nosso pai e passou a comandar o jornal após sua morte, em julho de 1969. Com o prêmio, a FIJ ressaltou a "corajosa e solitária luta que vem mantendo contra a censura à imprensa no Brasil".
O próprio regime militar, ao resolver partir para a abertura política, definida como uma distensão lenta, segura e gradual, reconheceu o papel histórico desempenhado pelo jornal. Pois o presidente Ernesto Geisel aproveitou a edição comemorativa do centenário da fundação do Estado, em 1975, para retirar a censura de nossa redação, anunciando, dessa forma, o fim da censura no País.
Essa consciência de que o jornal tem de cumprir sua função social de contar a verdade para seus leitores, sem abrir mão de funcionar como arma na luta política na defesa dos nobres ideais da liberdade, continua a impregnar a tinta que circula em nossas rotativas. A liberdade, antes de tudo, é o lema que corre no sangue de minha família, na luta para construir um Brasil melhor e mais justo para os nossos filhos
(*) Formado em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia da USP era Diretor do Jornal O Estado de São Paulo e que faleceu ontem em São Paulo aos 88 anos.
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