Dividir o Pará prá quê?
Lúcio Flávio Pinto
De que serve dividir o Pará, o segundo maior Estado do Brasil, para torná-lo mais administrável, se o modelo de desenvolvimento continuar o mesmo, velho de quatro décadas – e eficiente, até hoje, mas contra o Pará? Quem levou a esse resultado, vai querer mudá-lo?
O ano de 1975 foi fatal para a Amazônia, mas, acima de tudo, para o Pará. Eleito pela Assembléia Legislativa, onde o partido oficial tinha completo controle, o professor Aloysio da Costa Chaves queria fazer história. Antes de tomar posse, reuniu alguns dos melhores técnicos do Estado e lhes deu uma tarefa: preparar o plano de governo. Ele seria o primeiro governador paraense a levar um planejamento de diretrizes e de ação para a chefia do poder executivo. Não ficaria levado ao sabor das ondas.
Antes de ser acolhido pela Arena (Aliança Renovadora Nacional), por imposição de Brasília, que apenas consultou as principais lideranças estaduais sobre o nome já escolhido, Aloysio fora presidente do Tribunal Regional do Trabalho e reitor da Universidade Federal do Pará. Tinha o perfil ao gosto do general Ernesto Geisel, um descendente de alemães na presidência da república: era técnico, tinha trânsito político, era reconhecido como homem público e possuía autoridade. Reunia os elementos do autoritarismo tecnocrático que comandava o Brasil.
Ciente (ou onisciente) do próprio valor, Aloysio Chaves não prestou muita atenção à cor ideológica ou aos antecedentes dos técnicos com os quais se reunia quase diariamente num dos andares da sede do Banco da Amazônia, em Belém, que lhe fora cedido para preparar o seu governo. Queria um plano consistente, criativo e audacioso. Com ele, talvez pudesse impor à história do Pará uma nova cronologia: antes e depois de Aloysio da Costa Chaves.
Quando pronto, o Plano de Diretrizes e Ação do Governo correspondeu à expectativa de quem o encomendara: provocou impacto nacional. Pela primeira vez um governador biônico, que o poder central impunha aos parlamentos estaduais, criticava, ainda no nascedouro, a própria origem. O plano paraense apontava a hipertrofia do centralismo de poder no Brasil, que deixava ao planejamento local a tarefa de apenas aplicar os recursos que lhe eram destinados, com finalidade previamente estabelecida. Era uma camisa-de-força. Só a União podia realizar o planejamento inovativo. Aos Estados, restava o planejamento alocativo. Aloysio Chaves queria decidir, não ser só figurante.
Ele achava tão justa e normal a pretensão que, antes de tomar posse, foi à Alemanha, a convite do governo germânico. Os alemães estreitavam suas relações oficiais com o Pará, atuando em vários setores, a partir de um núcleo acadêmico, durante a gestão de Aloysio na UFPA. Ele estava em plena visita quando foi chamado com urgência a Brasília pelo homem que apadrinhara sua escolha: o general Gustavo Moraes Rego Reis, casado com uma paraense (irmã do influente advogado Otávio Mendonça, eminência parda em vários governos), o principal assessor militar do presidente.
Geisel ficara irritadíssimo pelas pretensões do governador biônico ainda nem empossado. O Estado de S. Paulo lhe dedicara seu principal editorial para elogiar sua postura de independência e crítica em relação a Brasília, afinada com as posições do principal jornal do país, antes aliado e agora adversário do regime militar. O presidente exigira o enquadramento do governador, sob pena de ser expurgado. E Aloysio se enquadrou, deixando de lado suas pretensões à história.
Certamente ele e sua equipe de técnicos deram a devida atenção ao II Plano de Desenvolvimento da Amazônia, que deveria dar continuidade ao pioneiro planejamento regional desencadeado pelo governo federal e iniciado em 1953, com a SPVEA (Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia), que antecedeu o capítulo seguinte dessa história, no Nordeste, posterior, mas muito mais comentado.
O planejamento voltava a ser qüinqüenal (1975/79) e, além do rigor técnico, trazia outra inovação: a Amazônia deixava de ser considerada como área autônoma, com identidade própria. A região teria que desempenhar um papel no conjunto da economia nacional, ainda vivendo as ilusões de prolongar o “milagre econômico”, criado pelo governo militar anterior (do general Garrastazu Médici).
O mago do “milagre”, Delfim Neto, não era bem visto pelos novos inquilinos do Palácio do Planalto. Foi mandado para a embaixada em Paris. O novo tecnocrata-chefe, o piauiense João Paulo dos Reis Veloso (ainda em plena atividade, do lado do balcão da iniciativa privada e das ONGs), sabia que não podia continuar a alimentar as altas taxas de crescimento do PIB com poupança externa. Essa fonte de capital tinha que ser substituída. O melhor substituto era a Amazônia, com seus abundantes recursos naturais, em especial os minérios, que começavam a ser revelados do subsolo e se tornavam acessíveis através das estradas de rodagem.
O que a Amazônia não podia ter era a pretensão à autonomia, a decidir seus destinos. O governo central lhe impunha a integração compulsória à economia nacional, atrelada, por sua vez, ao mercado internacional. Só assim podia agregar ao país o que ele mais cobrava dela: divisas em moeda estrangeira, através de exportação crescente e saldo na balança comercial. Projetada para um primeiro qüinqüênio, essa diretriz seguiu sem descontinuidades até hoje.
O Pará é o quinto maior exportador do Brasil e o segundo em saldo de divisas. É o terceiro maior exportador nacional de energia bruta, que gera o efeito multiplicador econômico nos locais para os quais essa energia se destina. Essa face do projeto foi plenamente cumprida: antes do II PDA o Pará era um traço no comércio exterior brasileiro.
Mas a outra face também foi moldada: mesmo tendo a 9ª maior população nacional, o Estado é o 16º em IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) e o 21º em PIB per capita (a riqueza, que é drenada para o exterior em maior volume, dividida pela população, que cresce mais em função da imigração intensa). É um efeito previsto pelos formuladores do plano, que adotou um modelo de desenvolvimento “desequilibrado corrigido”.
Para crescer rápido e oferecendo ao mercado produtos de aceitação mundial (as commodities), o Pará – como a Amazônia – tinha que incorporar empreendimentos de capital intensivo e alta tecnologia, capazes de colocar no exterior mercadorias a preços competitivos. O efeito nocivo desse modelo é concentrar os benefícios, deixando de fora aqueles que não têm condições (por sua qualificação ou por sua quantidade) de participar do processo produtivo em escala mundial.
Aí entraria o governo. Por um ato de vontade, corrigiria os muitos desequilíbrios do modelo com ação redistributiva ou saneadora. Como as distorções são efeito natural do modelo, que inevitavelmente acarreta desequilíbrios de várias naturezas (social, econômico e espacial), a correção, por ser um ato de vontade, requer o planejamento para orientar e dar eficiência à ação pública.
Impondo a perversão do modelo, o governo federal não podia abrir mão daquilo que o governador eleito Aloysio Chaves reivindicava na passagem de 1974 a 1975, o ano primeiro tanto do seu plano quanto do governo federal: o planejamento inovativo – e não apenas o que lhe cabia no modelo autoritário de Brasília: o planejamento alocativo, de alocação de projetos e verbas definidos por – e de – Brasília.
Cabe à biografia do ex-reitor o mérito de pelo menos haver tentado um novo caminho. Pesa-lhe sobre os ombros, porém, ter recuado de forma tão desastrada, limitando-se a partir daí a polir as insignificâncias, como todos os que o sucederam. Depois dele, porém, as tentativas de afirmação das lideranças locais, quando existiram, foram apenas formais, retóricas, de brincadeira.
Quando a democracia foi restabelecida no Brasil, em 1985, essa conquista não teve qualquer significado prático nas relações centro-periferia, na questão regional, desprezada pelos intelectuais do centro dominante, de esquerda ou de direita (para os primeiros, por ser a forma primitiva do capitalismo a ser modernizada, nem que à força, como na URSS; para os segundos, por ser tão somente uma fonte de riquezas a explorar).
Os governos estaduais amazônicos não só perderam em conteúdo político das suas lideranças como foram renunciando à busca pelo planejamento criativo, que é a razão de ser do planejamento como momento político. Afinal, se não se pode tomar a iniciativa, se o planejamento não é precedido pelo poder de decidir, os Estados continuariam a fazer o que Brasília quer e a repetir o que proclama.
E assim tem sido sempre, tanto na chefia do poder executivo estadual quanto nas casas parlamentares (e até mesmo nas academias, reduzidas a tertúlias intelectuais). Os nativos deixaram de pensar grande, de acompanhar em cima os atos decisórios e, preparando-se para decidir, poder realmente decidir, com domínio do conhecimento. A Amazônia tem tido a grandeza de cenário, não a de ator, protagonista.
É esse o pano de fundo que explica a pobreza do ambiente num novo momento importante da história regional. Os paraenses serão os primeiros brasileiros a decidir sobre a sua configuração espacial através de plebiscito. A novidade foi proporcionada pela constituição de 1988. Depois que a chamada carta magna entrou em vigor, apenas Goiás se dividiu para o surgimento de um novo Estado, o Tocantins.
Mas não foi preciso consultar a população: a emancipação da parte norte do novo Estado foi pacífica, consensual. Todos estavam de acordo que assim seria melhor, tanto para os moradores da nova unidade federativa quanto para os remanescentes de Goiás, que apostavam as fichas do crescimento incrementado na metade meridional do antigo Estado, desligado da sua metade atrasada.
A situação não é a mesma no Pará. Apenas parte da sua população está convencida de que só pode crescer mais se libertando do peso da atual configuração territorial, de 1,2 milhão de quilômetros quadrados, a segunda maior do país. Outra parte reage há décadas às pretensões emancipacionistas da zona Oeste, mobilizada em torno do Estado do Tapajós, e combate abertamente as pretensões dos moradores da fração Sul do Estado, que quer formalizar sua dissociação de fato através do Estado de Carajás.
Argumentos em favor da separação se sustentam em quase obviedades: o Pará é grande demais; Belém já demonstrou sua incapacidade para bem administrar as áreas mais distantes do Estado; e cada uma dessas partes formou identidade própria, seja pela migração intensa (caso de Carajás) como por uma aspiração secular (o Tapajós), que se realizou apenas pela metade, quando o país admitiu a autonomia da parcela ocidental da Amazônia, com a criação da província do Rio Negro (depois Estado do Amazonas, a seguir subdividido em Roraima, Acre e Rondônia, enquanto do Pará nascia o Amapá).
A primazia histórica de decidir sobre a territorialidade estadual está sendo desperdiçada. Uma questão grave se transformou em disputa de geral de campo de futebol e extensão das medíocres disputas excaramuças paroquiais. Rapidamente os temas de fundo foram afogados pelos impulsos emocionais e pelos interesses particulares, como se não estivesse em causa procurar uma saída para esse fato perturbador: quanto mais cresce, mais o Pará fica desequilibrado, sufocado por problemas sociais aparentemente insolúveis. Há riqueza em circulação, mas a ela raros têm acesso.
O modelo de desenvolvimento é o mesmo de 35 anos atrás: desequilibrado corrigido. Cada vez mais desequilibrado; cada vez menos corrigido. O resultado: os desequilíbrios se multiplicam e se agigantam. O Pará é líder em indicadores econômicos quantitativos e em índices sociais negativos. Essa combinação explosiva acarreta uma violência espantosa.
Ela se traduz em realidades objetivas, como a das mortes por encomenda, e em outras mais subjetivas, que escapam à percepção superficial, como a péssima qualidade da educação e as incivilizadas (ou selvagens mesmo) regras de convivência em aglomerações humanas, com ênfase nas suas grandes cidades, tensionadas por bolsões de guerras de verdade, embora não declaradas.
As lideranças, coniventes com esses paradoxos, ou que lhes deram causa, são as mesmas que carregam os estandartes das campanhas territoriais. Subordinam as teses aos seus interesses de tal forma que não conseguem ter unidade e nem se interessam por aumentar a consciência dos seus companheiros de luta. Querem massa atrás de si, como em todas as eleições, que mudam os nomes para manter as situações.
Mesmo os projetos de emancipação, formulados no parlamento federal por pessoas sem conhecimento de causa, não constituem o mais importante deste plebiscito inédito. Nenhuma das duas leis, aprovadas por acordo de lideranças de partidos ainda no âmbito da comissão técnica, sem passar pelo plenário das discussões e deliberações, não resistem a um teste de consistência.
O que eles mais deviam corrigir, é justamente o que mais negam: uma nova organização espacial para viabilizar os três Estados que surgiriam desse desenho irracional. O Tapajós sofrerá da mesma macrocefalia do atual Pará, enquanto Carajás será uma satrapia dos “grandes projetos”, ou da antiga Companhia Vale do Rio Doce, mais ao molde do “desenvolvimento desequilibrado corrigido” do que o atual Pará.
Numa medição de forças que não é ponderada pelo conhecimento de causa, a decisão pode resultar diretamente das grandezas numéricas ou seguir pelo desvio de uma manipulação de massa. Os dois elementos se encontram, em tese, sobre o tabuleiro de xadrez da disputa. Pela grandeza numérica, não há dúvida: a maioria rejeitará a separação no plebiscito de 11 de dezembro. A “zebra” dependeria da quantidade de recursos colocados à disposição do marketing, liderado pelo célebre Duda Mendonça – e de sua capacidade mágica de convencer a opinião pública.
Isso em relação à bipolaridade, que está em causa na consulta, sem, contudo, anular uma possibilidade pouco enfatizada: de que, ao invés de um ou três Estados, surjam dois Estados (o Pará, incluindo Carajás, e o Tapajós), se essa hipótese for trabalhada por aqueles que ela favorece (o que ainda não aconteceu).
Qualquer que venha a ser o desfecho desse novo momento da história brasileira, uma coisa é certa: se houver mudança, nada mudará; se não houver mudança, as portas da transformação terão sido abertas porque a situação não regredirá ao status quo ante pelo menos num ponto: de que as coisas que estão assim só têm que continuar assim como estão.
Mesmo que o Pará permaneça territorialmente como se acha, os líderes dos movimentos emancipacionistas terão alargado suas influências e alianças para pretender, em 2014, concorrer em igualdade de condições com os tradicionais representantes das elites da capital. O interior compreendido por Tapajós e Carajás poderá, enfim, conquistar o poder executivo estadual, complementando a consolidação do poder que já possui no legislativo paraense, majoritariamente formado por políticos do interior.
Nesse caso, com nova autoridade, os emancipacionistas poderão voltar à batalha, em outras condições. Para ganhar, sem permitir, porém, que o Estado “leve” a conquista. Sem mudar aquelas diretrizes do II PDA, que sufocaram o plano do governador Aloysio Chaves, o Pará continuará a crescer como rabo de cavalo: para baixo. Com a ajuda coadjuvante dos líderes separatistas e conservadores, até agora os mesmos de sempre.
(*) Jornalista escritor e sociólogo
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