O tumor descoberto nas cadeias é só mais um na capitania castigada há quase 50 anos pela institucionalização do absurdo
Júlia Rodrigues (*)
Em meio à entrevista coletiva concedida em 9 de janeiro pela governadora do Maranhão e pelo ministro da Justiça, uma jornalista quis saber de José Eduardo Cardozo as razões do silêncio do governo federal sobre a mais recente epidemia de horror que assola a capitania hereditária dos Sarney. O visitante ainda caçava explicações quando Roseana Sarney confiscou a palavra: “Quem manda aqui não é a família, sou eu”, interveio. “Se querem penalizar alguém por isso, penalizem a mim, não a família. Eu que sou a governadora”.
É uma meia-verdade (ou uma meia-mentira). Ela acertou ao reconhecer que é responsável pelos massacres ocorridos no presídio de Pedrinhas. Mas até os azulejos coloniais dos casarões de São Luís sabem que o Maranhão se transformou em 1965 num feudo dominado por um clã que soma aos integrantes da família uma extensa lista de aliados políticos, parceiros eleitorais, empresários bem sucedidos e amigos espalhados pelos três Poderes. Juntos, eles formam a Famiglia Sarney.
Dos 13 governadores que ocuparam o Palácio dos Leões nos últimos 48 anos, só Jackson Lago, filiado ao PDT, sempre fez oposição ao clã. A exceção não completou o mandato. Acusado da prática de crimes eleitorais na campanha de 2006, Lago foi afastado em 2009 pelo Tribunal Superior Eleitoral, que o substituiu pela adversária que derrotara nas urnas: Roseana Sarney. “Como se sabe há muito tempo, os juízes do Sarney estão por toda parte”, fustigou Jackson, morto em abril de 2011.
A fidelidade à Famiglia é uma garantia de cargos públicos, bons empregos e bons negócios. O empresário Luís Cantanhede Fernandes, por exemplo, socorreu Roseana Sarney em 2002, quando a Polícia Federal encontrou R$ 1,34 milhão em dinheiro vivo no escritório que dividia com o marido, Jorge Murad. Para livrar-se das complicações produzidas pelo Caso Lunus, o casal alegou que a bolada fora emprestada por Fernandes. Não por coincidência, o empresário generoso, dono da Atlântica Segurança Técnica, foi recompensado com a administração de parte das cadeias estaduais, terceirizada em 2009. Só no ano passado recebeu R$ 7,6 milhões da Secretaria de Justiça e Administração Penitenciária (Sejap).
Previsivelmente, Fernandes figurou na relação dos convivas da festa de réveillon que animou há poucas semanas a residência de veraneio do governo maranhense. O cardápio escolhido pela anfitriã não tem parentesco com o que é servido aos presos. Os 2.186 condenados que se amontoam nas celas com 1.170 vagas do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, por exemplo, são frequentemente castigados com a mistura de arroz aguado e galinha crua.
Para cuidar da segurança dos festeiros, não faltaram os policiais militares que sumiram das cadeias terceirizadas. O controle da população carcerária do Maranhão, composta por 6.145 detentos, foi transferido para 382 agentes de segurança remunerados com salários inferiores a mil reais. O descaso do governo é tamanho que o telefone divulgado no site oficial da Sejap está errado. “Não aguento mais receber ligações”, diz o dono da casa atormentado por ligações de quem tenta conseguir algum tipo de ajuda do órgão estadual.
O assombroso tumor escancarado por dezenas de decapitações é só mais um na capitania devastada pela rotina do absurdo. Em 1966, quando José Sarney assumiu o comando da capitania, a situação era ruim. Passado meio século, é péssima. O IDH maranhense só supera o de Alagoas. Segundo o Censo 2010, o estado abriga 32 dos 50 municípios mais miseráveis do país. Um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) revelou em 2011 que 14% da população viviam em situação de pobreza extrema.
Em 82 cidades, a renda média mensal é inferior ao recebido pelos beneficiários do Bolsa Família. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) de 2013, o Maranhão é o segundo do país com maior número de casas sem banheiro. Só perde para o Piauí. Em contrapartida, a vida da Famiglia não para de melhorar. O patrimônio declarado inclui um jornal, uma ilha particular, quatro emissoras de TV, 17 emissoras de rádio e propriedades em São Luís, Brasília e Rio de Janeiro. Tudo somado, a fortuna dos Sarney já ultrapassou a faixa dos R$130 milhões.
Com o aparte em que tentou livrar de culpas o clã a que pertence, Roseana apenas confirmou o apreço dos Sarney por versões falsificadas. Depois da explosão de violência em Pedrinhas, ficou mais difícil reincidir no assassinato da verdade.
(*) Jornalista
Júlia Rodrigues (*)
Em meio à entrevista coletiva concedida em 9 de janeiro pela governadora do Maranhão e pelo ministro da Justiça, uma jornalista quis saber de José Eduardo Cardozo as razões do silêncio do governo federal sobre a mais recente epidemia de horror que assola a capitania hereditária dos Sarney. O visitante ainda caçava explicações quando Roseana Sarney confiscou a palavra: “Quem manda aqui não é a família, sou eu”, interveio. “Se querem penalizar alguém por isso, penalizem a mim, não a família. Eu que sou a governadora”.
É uma meia-verdade (ou uma meia-mentira). Ela acertou ao reconhecer que é responsável pelos massacres ocorridos no presídio de Pedrinhas. Mas até os azulejos coloniais dos casarões de São Luís sabem que o Maranhão se transformou em 1965 num feudo dominado por um clã que soma aos integrantes da família uma extensa lista de aliados políticos, parceiros eleitorais, empresários bem sucedidos e amigos espalhados pelos três Poderes. Juntos, eles formam a Famiglia Sarney.
Dos 13 governadores que ocuparam o Palácio dos Leões nos últimos 48 anos, só Jackson Lago, filiado ao PDT, sempre fez oposição ao clã. A exceção não completou o mandato. Acusado da prática de crimes eleitorais na campanha de 2006, Lago foi afastado em 2009 pelo Tribunal Superior Eleitoral, que o substituiu pela adversária que derrotara nas urnas: Roseana Sarney. “Como se sabe há muito tempo, os juízes do Sarney estão por toda parte”, fustigou Jackson, morto em abril de 2011.
A fidelidade à Famiglia é uma garantia de cargos públicos, bons empregos e bons negócios. O empresário Luís Cantanhede Fernandes, por exemplo, socorreu Roseana Sarney em 2002, quando a Polícia Federal encontrou R$ 1,34 milhão em dinheiro vivo no escritório que dividia com o marido, Jorge Murad. Para livrar-se das complicações produzidas pelo Caso Lunus, o casal alegou que a bolada fora emprestada por Fernandes. Não por coincidência, o empresário generoso, dono da Atlântica Segurança Técnica, foi recompensado com a administração de parte das cadeias estaduais, terceirizada em 2009. Só no ano passado recebeu R$ 7,6 milhões da Secretaria de Justiça e Administração Penitenciária (Sejap).
Previsivelmente, Fernandes figurou na relação dos convivas da festa de réveillon que animou há poucas semanas a residência de veraneio do governo maranhense. O cardápio escolhido pela anfitriã não tem parentesco com o que é servido aos presos. Os 2.186 condenados que se amontoam nas celas com 1.170 vagas do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, por exemplo, são frequentemente castigados com a mistura de arroz aguado e galinha crua.
Para cuidar da segurança dos festeiros, não faltaram os policiais militares que sumiram das cadeias terceirizadas. O controle da população carcerária do Maranhão, composta por 6.145 detentos, foi transferido para 382 agentes de segurança remunerados com salários inferiores a mil reais. O descaso do governo é tamanho que o telefone divulgado no site oficial da Sejap está errado. “Não aguento mais receber ligações”, diz o dono da casa atormentado por ligações de quem tenta conseguir algum tipo de ajuda do órgão estadual.
O assombroso tumor escancarado por dezenas de decapitações é só mais um na capitania devastada pela rotina do absurdo. Em 1966, quando José Sarney assumiu o comando da capitania, a situação era ruim. Passado meio século, é péssima. O IDH maranhense só supera o de Alagoas. Segundo o Censo 2010, o estado abriga 32 dos 50 municípios mais miseráveis do país. Um estudo do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) revelou em 2011 que 14% da população viviam em situação de pobreza extrema.
Em 82 cidades, a renda média mensal é inferior ao recebido pelos beneficiários do Bolsa Família. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) de 2013, o Maranhão é o segundo do país com maior número de casas sem banheiro. Só perde para o Piauí. Em contrapartida, a vida da Famiglia não para de melhorar. O patrimônio declarado inclui um jornal, uma ilha particular, quatro emissoras de TV, 17 emissoras de rádio e propriedades em São Luís, Brasília e Rio de Janeiro. Tudo somado, a fortuna dos Sarney já ultrapassou a faixa dos R$130 milhões.
Com o aparte em que tentou livrar de culpas o clã a que pertence, Roseana apenas confirmou o apreço dos Sarney por versões falsificadas. Depois da explosão de violência em Pedrinhas, ficou mais difícil reincidir no assassinato da verdade.
(*) Jornalista
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