sábado, 18 de janeiro de 2014

Mandela e Lula, a conciliação e o confronto

A. P. Quartim de Moraes (*) 

Ecoam no mundo as homenagens que enaltecem a memória daquele que é considerado uma das maiores personalidades da política do século 20, Nelson Mandela, o homem que conseguiu acabar pacificamente com a segregação racial legal e reconciliar seu país consigo mesmo. O êxito de Mandela na luta contra o apartheid e para lançar as bases da democracia na África do Sul deveu-se à sua capacidade de convencer, principalmente a imensa maioria negra, ao lado da qual lutava, de que o sangrento conflito racial que mantinha o país preso ao passado só poderia terminar no dia em que negros e brancos se reconhecessem mutuamente, para além de suas profundas diferenças, como cidadãos iguais perante a lei. E que, como tal, se respeitassem. 

Se é fácil imaginar a carga de preconceito que os brancos precisaram superar para aceitar a conciliação com os negros, mais fácil ainda é entender até que ponto o absolutamente compreensível rancor de uma imensa maioria negra historicamente perseguida e oprimida se apresentava como um obstáculo aparentemente intransponível ao projeto de conciliação defendido por Mandela. Mas uma inabalável convicção e uma inquebrantável perseverança mantiveram o grande líder firme e determinado mesmo nos momentos, certamente muitos, em que se viu confrontado pelo ceticismo e pelo inconformismo, quando não pela desconfiança de seus companheiros. Mandela, genuíno homem público, sabia que existe uma enorme diferença entre convencer e agradar e que muitas vezes é preciso pagar o preço das verdades duras, dos argumentos ásperos, para colher mais adiante o bem comum. Mandela, definitivamente, não era um populista. 

Já no Brasil... 

Em contradição com tudo o que Nelson Mandela pregou e realizou, aquele que se considera o nosso maior e mais importante líder político, Luís Inácio Lula da Silva, incorpora o mais refinado figurino populista do cenário latino-americano. Refinado, explico, apenas por conta de que Lula consegue ser o grande ilusionista que é num país onde, por questões históricas peculiares, as instituições democráticas são mais sólidas do que as daqueles em que a falácia do "bolivarismo" sustenta a liderança de populistas simplesmente patéticos. 


Mandela dedicou a vida à conciliação dos sul-africanos. 
Lula prega o confronto entre os brasileiros. Nosso eterno líder sindical se convenceu, desde sempre, de que na política só existem "nós ou eles" e esse mantra segue sendo a síntese de seu, digamos assim, pensamento político, muito especialmente em períodos eleitorais. 

Durante os primeiros 20 anos de existência do PT Lula foi o ferrabrás que era contra "tudo isso que está aí". Para se eleger em 2002 converteu-se provisoriamente em "Lulinha paz e amor", o que incluía desdizer quase tudo o que sempre dissera nos palanques. 
Mas, eleito e estimulado por índices estratosféricos de apoio popular, gradativamente voltou a ser o velho Lula rancorosamente hostil com os "inimigos" e pragmaticamente impositivo tanto na ação governamental quanto na partidária. 

Lula exige que sua palavra seja lei. E a lei de Lula manda, primeiro, privilegiar ações de governo populistas, como um bolsismo necessário, mas incompetente e de viés claramente demagógico, e, depois, lançar a culpa de tudo o que não funciona ou dá errado sobre os ombros de um inimigo difuso, jamais denominado, que tanto podem ser as "elites" quanto todo e qualquer vivente que ouse a ele se opor. Por inspiração do Grande Chefe e com o toque de glamour fornecido pelo marketing, o discurso e a ação do governo baseiam-se hoje num tripé: a promessa, a versão e o porrete. Promessa de inesgotáveis bondades de grande apelo popular, versão edulcorada - ou puramente mendaz - dos desacertos provocados por sua própria incompetência de gestão e porrete no lombo da tigrada inimiga. 

Haverá quem afirme que qualquer governo faz o mesmo, no mundo inteiro. É uma generalização talvez um tanto depreciativa, mas, enfim, governos são os homens que os integram e todos sabemos que o homem está longe de ser a obra mais perfeita do Criador. Tudo, porém, tem um limite, como diria o conselheiro Acácio. E em política o limite de tolerância para os malfeitos dos políticos - imperdoável corrupção à parte - é o da traição aos princípios que sempre defenderam. Nelson Mandela foi um exemplo de coerência.
Lula traiu suas origens ao fazer, por apego ao poder, o Brasil ressuscitar com toda a força o secular patrimonialismo estatal que transformou o estamento burocrático em verdadeiro dono do poder, conforme Raymundo Faoro diagnosticara muito antes do advento do lulopetismo. 

O próprio Lula revelou-se, ele mesmo, lá do pináculo de sua onipotência, um patrimonialista tão irredimível quanto os tradicionais coronéis da política aos quais se aliou, ao demonstrar que não distingue o público do privado: ao apagar das luzes de seu governo, teve o caradurismo de mandar distribuir passaportes diplomáticos para seus petizes e dias depois, já ex-presidente, refestelou-se com a família em aprazível propriedade da Marinha no Guarujá, para um merecido descanso à custa do erário. Exemplos aparentemente sem maior importância, mas suficientes para desnudar o rei. 

Neste ano eleitoral, o tripé petista está armado de modo a garantir para a turma de Lula e seus aliados de mão grande mais quatro anos de patrimonialismo explícito, defendido na base da porretada, até mesmo contra o Judiciário. Dilma Rousseff aparentemente já conseguiu conciliar essa estratégia com seu próprio passado, simplesmente olhando para o outro lado, enquanto Lula decide o que deve ser dito nos palanques e quais devem ser os alvos da artilharia pesada. O recente e feroz ataque ao ex-aliado Eduardo Campos é uma pequena amostra do que vem por aí. 

Tudo a demonstrar que entre Lula e Nelson Mandela c'è di mezzo il mare... 

(*) É jornalista articulista e editorialista do jornal O Estado de São Paulo

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